Rennan Cantuária

Rennan Cantuária (@rennancantuaria) é sociológo formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e especializando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, onde pesquisa a crise da ficção. É professor e integra a coordenação do Pré-Vestibular Comunitário Conceição na Baixada Fluminense. Além disso, gosta de escrever sobre o cotidiano, motivo da existência dessa página.

Caminhos do parecer para o ser

Assisti a uma entrevista interessantíssima do Charla Podcast com o zagueiro Wallace, que jogou no Flamengo entre 2013 e 2016. Em ótima fase, Wallace se tornou conhecido na mídia por ser um jogador inteligente, interessado pela leitura e pelos estudos, algo distante do estereótipo popularmente consolidado para a figura de um zagueiro, comumente atrelada à força e à superioridade física. Esta, aliás, é ainda uma característica comum no mundo dos esportes, principalmente quando falamos de futebol. Porém, quando Wallace passou a ser questionado dentro de campo, acabou publicamente estigmatizado por este contraste tão próprio da divisão social do trabalho, o que em parte evidencia os distintos valores que damos para as atividades intelectuais e as atividades físicas ou braçais na nossa sociedade.

Diferente do que imaginei, essa conversa não foi para um caminho sobre o sucesso ou o fracasso, sobre a superação ou a depressão. Não, Wallace abordou como determinadas imagens e, mais especificamente, personalidades introspectivas tendem a ter suas habilidades questionadas diante de um mundo que cultua padrões e características próprias da extroversão.

É óbvio que adotamos o resultado como parâmetro fundamental para a avaliação, seja numa prova da escola ou numa partida esportiva. Porém, quando pensamos em alguém vitorioso ou de sucesso, não limitamos nossa percepção ao aspecto do resultado, mas também atrelamos uma imagem, um temperamento e uma personalidade à aparência dessa figura. Neste aspecto, alguém bonito, simpático, que se comunica bem e tem facilidade de socializar leva vantagem na avaliação, ainda que possa ter resultados semelhantes a alguém que não possui tais características.

Não por acaso, são valorizadas características típicas da masculinidade, o que agrava as sensibilidades reprimidas de homens e mulheres nos espaços corporativos, esportivos e políticos, por exemplo, onde acabam excluídas habilidades e nuances importantes para um bom trabalho. Esse é só um exemplo do quão comum é credenciarmos mais chances de aceitação e sucesso ao extrovertido do que ao introvertido, acreditamos mais em quem está nos padrões do que em quem foge deles.

Na sabedoria popular, há um ditado que diz que “não basta você ter dinheiro, você precisa parecer que tem dinheiro”. Este é um valor evidenciado em boa parte das nossas interações mediadas pelas redes sociais, mas não se limita a elas. Há uma estética positiva que não se resume a roupas, paisagens, sorrisos e ideais de perfeição. Essa mesma positividade exige de nossas interações cotidianas relações que não dêem brecha para emoções, sentimentos e vulnerabilidades, principalmente quando há tanto para fazer, apreciar e mostrar resultados – ou, na linguagem das redes sociais, precisamos produzir, curtir e compartilhar ao máximo.

Se você leu esse texto até aqui, tenho certeza de que já viu ou vivenciou você mesma ou você mesmo algo do tipo. Por isso, acredito ser uma responsabilidade coletiva, isto é, de cada um e cada uma, a tarefa de nos conhecermos muito bem e rompermos com o espelho do que esperam de nós. Me refiro ao espelho, porque esperam de todos o mesmo, esperam que nos adequemos aos valores e à imagem da nossa sociedade acriticamente, transformando esta vida no que o filósofo Byung-Chul Han chama de “inferno do igual”.

Não se engane, você e eu também esperamos. É disso que se trata, nós também queremos ter sucesso, alcançar a felicidade e vencer na vida, nós também esperamos demais inclusive de nós mesmos. Hoje, eu acredito que, por meio do pleno conhecimento de nós mesmos, nós podemos por fim deixar de parecer para ser.

 

Parecer,
perecer
para ser.

 

Rennan Cantuária é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.

Sucesso?

Como bem diz Aílton Krenak, “a vida não é útil”. Vida é viver a jornada, é ser no mundo com tudo o que há no mundo. Lembrar que não estamos sós nesse desafio de viver é o primeiro passo para nos apropriarmos da empatia. Devemos adotar a empatia como um olhar amoroso para consigo e para o outro, como uma ferramenta de enfrentamento às diversas crises do nosso tempo.

Ora, nada disso se trata de ser “alguém” ou não, de ser útil ou não. Você não deixa de ser importante por não se encaixar sob determinada lógica ou valor, você não se torna descartável por não se sentir pertencente a um lugar, uma prática ou um grupo. Esses são valores hegemônicos que o mercado, a imprensa, as redes sociais e outras instituições insistem em reforçar; e que nós teimamos em reproduzir.

É importante compreendermos que os ditos valores do sucesso, do “ser alguém na vida”, são comumente pautados por comparação, competição, produtividade, consumo, preço  e, fundamentalmente, pelo lucro, características próprias das relações de produção e consumo, isto é, do capitalismo.

Com o avanço do neoliberalismo, nos distanciamos de valores sensíveis e consolidamos valores de mercado na nossa sociedade, processo muito bem representado nas recentes transformações das relações de trabalho, na qual deixamos de ser pessoas físicas para nos tornarmos pessoas jurídicas. Quando deixamos de ser pessoas trabalhadoras para nos tornarmos empresas, tomamos como referência e nos apropriamos dos valores empresariais e de mercado.

Os valores neoliberais se opõem à prática sensível de empatia e colocam em crise o próprio processo de alteridade. Num mundo cada vez mais atravessado pelo narcisismo e pela solidão, a alienação é agravada e nós já não conseguimos reconhecer algozes ou culpados. Já não é preciso que alguém fiscalize nossas inadequações e nos puna. Patrões de nós mesmos, frente ao espelho, somos nós os responsáveis por isso.

Aqui se inscreve a atualidade das palavras de Rosa Luxemburgo, que defendeu a construção de “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”. Construir uma visão crítica desta realidade, constituída pelo reconhecimento de outros valores e outras concepções de mundo possíveis, é, por si só, uma prática de empatia, alteridade e amor.

Rennan Cantuária é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.

Ser alguém na vida?

Nós costumamos esquecer, mas todo mundo é importante. São as medidas dessa importância que por vezes são confusas. Os valores que constituem essa mensura subjetiva misturam significados, sentidos e afetos muito diferentes.

Nós acreditamos que podemos ser importantes para alguém, para as amizades, para a família, para a parceria, mas nem sempre basta. Tendemos a crer que precisamos da aprovação de outras pessoas, de círculos maiores e ainda há dias em que é possível duvidar.

Por vezes é um misto de necessidade de atenção, medo da solidão e anseio por reconhecimento; outras vezes é a crença de que precisamos deter um lugar de autoridade para sermos “alguém na vida”. Tudo perante um temor profundo de não sermos ninguém.

Títulos, fama, grana, influência. Segundo tais valores, absorvidos sob uma lógica quase que empresarial, vivemos como se, de alguma forma, fosse possível não ser alguém. Você se torna “alguém” determinado pelo reconhecimento de quem crê nestas camadas de distinção entre “pessoas” e pessoas. Quando cogitamos romper com a lógica hegemônica, nos desencaixamos do todo, tememos a desconexão com os outros e o isolamento.

É como se houvesse algo de vergonhoso nisso. Por isso, acabamos por reforçar seus valores o tempo todo. Nas redes sociais, mostramos vidas perfeitas, teatralizadas, permeadas por uma suposta positividade, uma estética padronizada, ostentação financeira, utilitarismo e pouquíssima demonstração de vulnerabilidade.

Tudo aquilo que nos aproxima, humaniza e promove empatia parece oposto ao lugar de autoridade de “alguém na vida”. É possível que “ser alguém na vida” seja, de alguma maneira, algo semelhante a não ser gente.

Nós chamamos tudo isso de “ser alguém na vida”, mas não deveríamos. Saber quem se é, compreender porque chegou até aqui e decidir para onde se quer caminhar é fundamental para tomarmos o sentido dessa pessoa que queremos ser. Terapia e outras práticas terapêuticas ajudam muito nesse processo, pois promovem práticas de reconhecimento de si e do outro. Chamamos essa incrível habilidade emocional de empatia.

E pra você? O que é “ser alguém na vida”?

Rennan Cantuária é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.

O poder dos bancos e o crédito consignado

O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi (PDT), articulou a mudança do teto de juros cobrados aos beneficiários do INSS. Reivindicada por aposentados, a proposta foi aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social e reduziu os juros de 2,14% para 1,70% por mês. Isso significa que os empréstimos consignados, aqueles descontados diretamente na folha de pagamento ou no benefício (logo, créditos muito seguros para o banco credor), passariam a ter juros aproximadamente 20% mais baixos.

Surpreendentemente, os 0,44% a menos numa das transações de crédito mais seguras do mercado desencadearam reações diversas e instalou uma verdadeira confusão no governo e neste verdadeiro balcão de empréstimo consignado do Brasil. Os bancos, tanto os privados quanto os públicos, imediatamente retiraram a oferta de crédito consignado de seus serviços; alguns setores do governo Lula relataram certo “ruído” na comunicação entre os ministérios e outros criticaram o ministro Carlos Lupi pela ação solitária; e até os vendedores de crédito consignado esbravejaram contra o ministro, insatisfeitos com a consequente retirada do produto do mercado – uma vez que diversas empresas vendem crédito consignado e recebem um percentual estabelecido pelos bancos como comissão.

Essa confusão ilustra bem a complexidade das disputas que se dão tanto internamente no atual governo quanto na economia brasileira. Os bancos públicos tiveram papel fundamental nos dois primeiros governos de Lula, seja para interferência no mercado com o objetivo de reduzir as taxas de serviços e de juros entre os bancos, seja para a garantia de direitos sociais por meio de políticas públicas, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Entretanto, as evidentes disputas entre as políticas públicas de cunho social e as contraditórias autonomias do Banco Central e dos bancos públicos, que interferem diretamente na aplicabilidade e efetividade de políticas de cunho econômico, colocam o terceiro Governo Lula sob outra perspectiva.

Como se não fosse o bastante, mesmo descontados os custos operacionais dos bancos públicos brasileiros, seus faturamentos operam na casa das dezenas de bilhões de reais. Para se ter uma ideia, enquanto a Caixa Econômica Federal conseguiu um lucro líquido de pelo menos R$ 7,6 bilhões (ainda não anunciou o resultado do quarto trimestre do ano passado), o Banco do Brasil obteve o lucro líquido recorde de R$ 31,8 bilhões em 2022. Esta receita acaba dividida entre seus acionistas, mas poderia ser estrategicamente revertida em investimentos nos seus próprios serviços, a fim de auxiliar seus mais de 200 milhões de clientes no enfrentamento à crise econômica e na retomada do desenvolvimento do país.

Porém, tudo isso (inclusive o alto lucro) decorre de um problema ainda mais grave, que já se localiza no debate nacional desde o início deste novo governo: a urgente necessidade de redução da taxa básica de juros do país, atualmente em alarmantes 13,75%, o que afasta investimentos e endivida as famílias brasileiras. Para que o país retome seu crescimento e as famílias possam respirar financeiramente, é evidente que o Brasil precisa abandonar a taxa mais alta do planeta.

Como podemos ver, os dados apenas reafirmam a importância dos bancos públicos no tensionamento do mercado para a garantia de direitos sociais após tantos anos de crise. Neste caso, juros mais baixos significam maior acesso ao crédito (empréstimo) para milhões de pessoas. Consequentemente, é também oportunidade de empreendimentos, investimentos, mais consumo e pagamentos regulares em um país onde cerca de 80% das famílias já se encontram endividadas. Por isso mesmo, a medida precisa estar acompanhada de iniciativas de facilitação de pagamento de débitos e de desendividamento da população, como o Programa Desenrola, também proposto pelo PDT e já anunciado pelo Ministério da Fazenda, que deve beneficiar pelo menos 37 milhões de brasileiros endividados.

Nos resta somar forças para que os esforços do governo sejam aqueles de quem acredita na potência dos trabalhadores brasileiros, iniciativas que podem e devem apontar melhorias com vistas à qualidade de vida, à justiça social e, fundamentalmente, à transformação da vida de quem mais precisa.

Sugestão de leitura:

DOWBOR, Ladislau. Democracia econômica: alternativas de gestão social. Petrópolis: Vozes, 2012. Link para adquirir: https://amzn.to/3TmNKKp

TAVARES, Maria da Conceição. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/3JMFeku

VAROUFAKIS, Yanis. Conversando sobre economia com a minha filha. São Paulo: Planeta, 2015. Link para adquirir: https://amzn.to/3JuvU3m

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Defender a ciência e enfrentar suas contradições

É evidente que, diante do negacionismo em plena pandemia, das fake news em tempos de pós-verdade, todos nos dedicamos à luta em defesa da ciência. Um posicionamento mais que justo, por assim dizer, mas que esconde algumas contradições.

Olhando para os dias de hoje, não parece, mas os últimos séculos foram tempos de grandes transformações sociais. As Revoluções Científica e Industrial modificaram radicalmente o modo como a sociedade ocidental se estruturava e se organizava – no tempo, no espaço e na vida.

Descobrimos que a água não formava, junto à terra, o fogo e o ar, os quatro elementos fundamentais do planeta; mas que ela é composta por dois átomos de hidrogênio ligados a um átomo de oxigênio. Os dias deixaram de ser popularmente medidos pelas fases do sol, da lua e das estações do ano, dando lugar uma minuciosa divisão em horas trabalhadas, medindo fundamentalmente a quantidade de bens produzidos. As pessoas abandonaram a pacata e dura vida de lavoura no interior e ocuparam as grandes cidades em busca de algum trabalho remunerado, sob as condições mais degradantes, diante das maravilhas tecnológicas das fábricas que ali surgiam.

A sociedade agora se dividia em duas classes fundamentais, trabalhadores e detentores dos meios de produção, tomando para si os valores de compra em detrimento dos valores sensíveis, superestimando o ter perante o ser. Essas foram algumas das transformações a que o mundo fora apresentado e, agora, precisava lidar com suas trágicas consequências, como a profunda desigualdade, a superexploração da força de trabalho de homens, mulheres e crianças, a pobreza extrema, os males à saúde e a baixa expectativa de vida geral, a alta densidade demográfica dos centros urbanos e todos os demais problemas decorrentes deste novo e impositivo estilo de vida. Aquilo que começara na Europa, logo foi exportado para as periferias do mundo, atropelando suas especificidades e agravando suas desigualdades e exclusões.

As ciências sociais – fundamentalmente, a sociologia, a antropologia e a ciência política – surgem justamente neste cenário, tensionadas pelos métodos das ciências naturais e sob a nada simples responsabilidade de examinar e apontar caminhos para a solução dos problemas sociais que se multiplicavam a cada dia, perante o nascimento daquilo que hoje conhecemos como capitalismo. Elas nascem fortemente influenciadas pela teoria filosófica e científica do positivismo, quase dois séculos depois do surgimento do pensamento cartesiano, porém, mais de dois séculos antes de 2023.

Foi para adentrar ao mundo da ciência mesma, este das ditas ciências naturais, calcadas na metafísica aristotélica, tomadas por conceitos e valores que ainda habitam nosso imaginário na forma de jalecos brancos, cálculos matemáticos e experimentos químicos, que podemos compreender a resistência das ciências humanas e sociais – e, fundamentalmente, da ciência política – em romper com determinados parâmetros tradicionais da lógica, isto é, do racionalismo cartesiano.

Ainda no século XVII, ao separar a relatividade cultural, histórica e temporal da subjetividade dos sujeitos e reinventar a verdade por meio da razão, René Descartes impôs a exclusão do sonho e da loucura como regra para o pleno exercício da razão e, consequentemente, para a compreensão do que tomamos como verdade. Por isso, o psicanalista Christian Dunker identifica como marco fundamental da modernidade justamente a de-limitação por Descartes do que conceituamos como razão, com base na evidência material e na certeza psicológica; e subjetividade, “uma substância que pensa algo, mas não age conforme o que pensa”.

Quase 400 anos depois do pensamento cartesiano, a pós-modernidade ganha força na academia e em demais espaços na sociedade, recuperando certa politização entre as ciências humanas. Os estudos de gênero, os estudos culturais, as teorias pós-coloniais, o pós-marxismo e o pós-estruturalismo e a psicanálise de inspiração crítica ganham evidência e impõem uma maior reflexão sobre como nossas relações e nossos pequenos hábitos cotidianos reproduzem e atualizam relações de poder nos mais diversos âmbitos da vida.

Para Christian Dunker, o pós-modernismo aponta caminhos para a transformação de cada uma dessas relações de poder presentes no cotidiano, “um caminho real e acessível para que inventemos outros mundos e para que nos sintamos parte da diferença”, isto é, para que a diferença não seja mais social, cultural e historicamente imposta, jamais coercitiva, mas conformada por uma diferença construída.

Não por acaso, ainda hoje, não calculamos os prejuízos dos confrontos de juízo de valor entre métodos quantitativos e métodos qualitativos, apesar de todas as interações possíveis que podem proporcionar entre si, principalmente no âmbito das políticas públicas. Essa força que se impõe à relação entre ciências ditas exatas e humanas – como se os nomes apagassem a origem humana comum enquanto destacam quem detém os melhores parâmetros de confiabilidade – traz consigo o peso da disputa pelo lugar de autoridade na definição das verdades universais: ontem, a igreja; hoje, a ciência; amanhã, não se sabe.

A ciência tem uma relação conflituosa com a verdade. O filósofo brasileiro Clóvis de Barros Filho, famoso por seu trabalho de divulgação científica, costuma dizer que a ciência é um esforço para encontrar defeitos na ciência anterior. Para ele, “a ciência não é feita de verdade, a ciência é feita de falseabilidade, o cientista é aquele que trabalha para apontar o dedo e denunciar o erro do anterior”. Falseabilidade aqui significa refutabilidade, a condição de uma ideia, teoria ou hipótese de ser provada como falsa. O confronto entre ciência e verdade reaviva a disputa entre a concepção de mundo de Heráclito (540 a.C.), que toma a não estabilidade, o movimento e a transformação como características fundamentais do ser; e a ideia predominante de Parmênides (530 a.C.), que defendia a essência imutável do ser.

De alguma forma, a busca pelo lugar da verdade universal se encontra justamente no mundo fantástico, no campo do desejo de dominação e controle, no âmbito das próprias subjetividades. Não por acaso, cresce o resgate do método dialético que, por meio do diálogo, sugere a contradição e contraposição como caminho para conceber novos modos de existência, mundos, ideias e realidades. Com sorte, o abandono do poder decorrente das nossas certezas e verdades pode ser o principal desafio do nosso tempo.

Sugestão de leitura:

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Link para adquirir: https://amzn.to/3Jli3xt

DESCARTES, René. Discurso do método e ensaios. São Paulo: Editora Unesp, 2018. Link para adquirir: https://amzn.to/3mx6n1P

DUNKER, Christian. Subjetividade em tempos de pós-verdade. In: _______ et all. Ética e Pós-Verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017. Link para adquirir: https://amzn.to/3SXJ1yv

RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/41PKFGu

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

A política não é apenas lógica e a razão por que não

Há uma dimensão da vida que a política – e a ciência política – ainda resiste a abordar, mesmo que seja evidente a urgência da sua inclusão e investigação. Afinal, como compreender os fenômenos das fake news, do negacionismo, do bolsonarismo e dos fascismos, da normalização da intolerância, do ódio e da barbárie, ou mesmo entender a ordenação de forças que culminaram nas recentes investidas de golpe contra a democracia no Brasil, sem considerar a conformação de emoções, crenças, consciências e realidades outras, fundadas em princípios que não se encontram plenamente sob o estatuto da verdade e os princípios da racionalidade?

Perante tamanho esgarçamento das relações políticas e sociais no Brasil, pode alguém explicar tudo o que aconteceu por aqui apenas com um pensamento lógico, sem decair ele mesmo em uma perspectiva de relativismo ou de teoria da conspiração?

No início do ano, tive a oportunidade de visitar a Feira Literária de Paraty e conferir uma roda de conversa da FLIPEI intitulada “Sonhos de uma outra terra indígena”. No debate, o neurocientista Sidarta Ribeiro reforçou a necessidade de nos dedicarmos a estudar os sonhos e outras conformações de realidade que estão fora da concepção cartesiana da verdade. Ouvi-lo me remeteu a uma ideia muito presente na militância política há alguns anos, a perspectiva indígena zapatista de luta “por um mundo onde caibam muitos mundos”.

Por coincidência (ou encanto), esse encontro resgatou e ampliou algumas reflexões que já haviam cruzado meu caminho nos anos anteriores, como alguns textos de Luiz Antonio Simas e de Christian Dunker; e, mais recentemente, quase que de maneira contínua, algumas contribuições de Darcy Ribeiro, Elizabeth Gilbert, Jean-Paul Sartre e Murilo Gun. De alguma maneira, todos eles me proporcionaram tropeços, essas trombadas involuntárias que desnorteiam o corpo entre o chão e o espaço, decorrentes de suas intervenções e obras.

Mas o que um neurocientista, um historiador, um psicanalista, um cientista social, uma romancista, um filósofo e um ex-comediante palestrante poderiam ter em comum? De modo peculiar e diverso, conforme suas respectivas áreas de atuação, suas intervenções atravessam, reforçam e aprofundam reflexões sobre dimensões mágicas do mundo.

Algumas experiências simples demonstram, na prática, os limites que estão  postos à maioria das análises difundidas por aí. Em seu Esboço para uma teoria das emoções, Sartre justifica com exemplos sua investigação. Imagine que você está lendo esse texto em sua casa, quando repentinamente um rosto desfigurado, colado ao vidro, surge em sua janela. Mesmo ciente da barreira física que é a janela, da barreira espacial que é a distância que existe entre vocês ou mesmo sem saber ao certo de quem se trata, o horror tem essa capacidade de anular a razão e lhe criar um mundo mágico, onde a ameaça passa a ser sua principal característica. Tal como num sonho ou na loucura, onde as barreiras físicas e espaciais podem parecer não resistir às ameaças do algoz, perante a nossa incapacidade de lidar com o objeto que nos gera a emoção do horror, a consciência desfaz o mundo ordenado e impõe um mundo mágico, que também pode aparecer transformado “sem intermediário e por grandes massas”. Em resumo, segundo Sartre, nossa consciência pode operar de duas maneiras diferentes, isto é, sob o regime da razão e do encantamento.

De modo semelhante, mas em oposição ao horror, o historiador Luiz Antonio Simas defende que nós, enquanto povo, não criamos modos de vivenciar a alegria porque a vida é boa, mas justamente para afastar os perrengues vividos. Não por acaso, sempre relembra Beto Sem-Braço, ao repetir que “o que afasta miséria é festa”. Em suas obras, Simas aborda as culturas de fresta que, “pelas síncopes da festa, inventam o mundo e subvertem a miséria, inclusive a existencial”. Esse é um sentido fundamental para a compreensão do carnaval, por exemplo. Cada um a seu modo, Sartre e Simas defendem que o próprio sujeito se determina, ele se inventa enquanto atua no mundo e, assim, recria seus mundos também.

Hoje, tendo a crer que a pergunta necessária é anterior àquelas que fiz, baseada não no mero apontamento do outro, mas na crítica tanto à ciência política quanto a nossa prática de cada dia. Por que a (ciência) política insiste na hegemonia da razão cartesiana se é, ela mesma, causa e resultado de importantes tensionamentos com a razão cientificista? Os parâmetros da lógica não dão conta das especificidades vividas na realidade concreta das coisas. Mas, com sorte, a essa altura, já é carnaval.

Sugestão de leitura:

SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/3IxTdKE

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, LUIZ. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020. Link para adquirir: https://amzn.to/3lK2eHu

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/40ZX8aa

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Diálogo sobre o ódio

Pensei em escrever esse texto há tempos. Porém, confesso que as vezes me parecia inútil falar sobre escuta, diálogo e empatia diante do caos que tomou a política e a vida na segunda e terceira década do século XXI.

O avanço da extrema direita no mundo, a queda de uma presidente eleita no Brasil sem qualquer crime cometido, a ascensão do negacionismo e do ódio na política brasileira e uma pandemia sem precedentes que tirou a vida de mais de 6 milhões de pessoas por todo o mundo – três dessas pessoas eram familiares que moravam comigo. Nesta conjuntura (ou talvez em qualquer outra), é simplesmente impossível conversar com um indivíduo afeito a teorias da conspiração que escarnece das perdas de tantas famílias, um negacionista antivacina que duvida do papel da ciência no combate à doença, um militante de extrema direita que utiliza uma das maiores tragédias da história da humanidade para ressuscitar os tempos de Guerra Fria ou mesmo um terraplanista e seu planeta que flutua feito um frisbee pelo universo. Não, isso seria pedir demais da sua e da minha paciência.

A política nunca foi um ambiente fácil, é verdade. Só na primeira metade do século XX, o mundo foi atravessado pela pandemia de Gripe Espanhola que vitimou cerca de 17 milhões de pessoas por todo o planeta, duas Grandes Guerras que deram cabo de mais de 100 milhões de vidas, fora a Grande Depressão e outras crises. Na outra metade, tivemos a Guerra Fria – que não deu refresco algum pra quem vivia nas periferias do planeta -, a Guerra do Vietnã, as ditaduras civis-militares na América Latina, as lutas por independência dos povos ainda submetidos ao subjugo colonial e outros tantos confrontos.

Nas duas últimas décadas do século passado, tudo parecia caminhar para um novo mundo. O dito terceiro-mundo enfim conquistava sua autodeterminação, Mandela era solto e o apartheid chegava ao fim na África do Sul, as últimas ditaduras latino-americanas ruíam perante o anseio popular por democracia, o Muro de Berlim caia e representava o fim da Guerra Fria. Naquele tempo, Marty McFly andava sobre skates voadores, Michael Jackson cantava os ensinamentos de Mahatma Gandhi (“seja você a mudança que quer ver no mundo”), Ferris Bueller matava aula para protagonizar um novo modo de encarar a vida, Will Smith tomava um táxi com Quincy Jones da Filadélfia para Bel-Air, enquanto o Scorpions assobiava em Gorky Park os ventos da mudança qual Oyá.

Os conflitos entre as gerações nascidas no século XX, desde os baby boomers e passando pelas gerações X, Y (ou millenials) e Z, promoveram rupturas radicais e exigiram difíceis adaptações na educação, nas relações de  trabalho, nas expectativas sobre o futuro, nos valores e nas maneiras de ver o mundo. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, todas essas transformações entre as gerações sempre tiveram certo caráter traumático, deixando algumas pessoas pelo caminho, rejeitadas frente às novas demandas do tempo. Entretanto, de um modo geral, as gerações anteriores trabalharam duramente e investiram em seus filhos certos de que, no futuro, a nova geração familiar superaria seus feitos, uma tendência mundial que se manteve por determinado tempo. Sob a crença irrefutável num futuro de vasta sabedoria educacional, melhorias pessoais, avanços econômicos e desenvolvimento humano, muitas famílias investiram pesado na educação de seus filhos, recorrendo ao crédito e a dívidas astronômicas, certas de que a educação superior garantiria a continuidade da mobilidade social de seus descendentes.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ainda segundo Bauman, diante da realidade promissora da “reprodução intergeracional do sucesso”, nossos pais e avós semearam a esperança e uma série de expectativas sobre as gerações posteriores, certos de que seus filhos e netos teriam muito mais escolhas e possibilidades, superariam suas conquistas e voariam muito mais alto do que eles almejariam conseguir. Todavia, parece que o relógio toca suas doze badaladas e anuncia a chegada da meia noite, quando a carruagem dourada de um futuro próspero retoma sua forma original de abóbora. Após a primeira década do século XXI, nós compomos a primeira geração do pós-guerra a defrontar uma “expectativa de mobilidade descendente”. Hoje, a certeza está no futuro incerto dos empregos temporários e dos subempregos; dos falsos estágios que visam baratear ainda mais a contratação nos mesmos subempregos; dos microempreendedores individuais que enfrentam as exigências de um subemprego, mas tem negado seus direitos trabalhistas; dos bicos e freelas que mal dão conta da subsistência; dos serviços digitais de transporte e entrega por aplicativos, que impõem regras do século XVIII aos seus funcionários enquanto os chama de colaboradores. Tudo se torna transitório, exceto a crescente lista de desempregados, as péssimas condições de trabalho geral e essas verdadeiras “multidões de frustrados” que carregam consigo o peso da expectativa de gerações inteiras.

Tudo parecia perfeito, mas, aparentemente, miramos na bonança que chega após a tempestade e acertamos no silêncio que precede o caos. Após o período de grandes mudanças, as coisas começaram a degringolar rapidamente – e há um sentido nisso, sobre o qual poderemos falar em breve. A insatisfação e a (negação do sentimento de) culpa vestiram as roupas da indignação, da intolerância e do ódio.

Sugestão de leitura:

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: convesas com Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Link para adquirir: https://amzn.to/3XfW6ns

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/3jEGrAm

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. Link para adquirir: https://amzn.to/3JVjh3g

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

 

Histórias de Seu Cantuária

Na última semana, perdi um tio. Foi o sexto tio que faleceu em apenas dois anos. Depois de tantas perdas em um período tão curto e difícil para a vida, a gente aprende que a morte não traz apenas a dor e o luto, mas também muita burocracia. Foi vasculhando alguns papéis antigos da família que encontrei os documentos do Seu Cantuária.

Ao conferir os documentos, vi que Thomaz Cantuária nasceu em 29 de dezembro de 1909 na cidade de Cachoeira, terra de Caramuru, às margens do Rio Paraguaçu, na Bahia. Porém, há uma outra história que os papéis não contam, uma história que eu conheço e mal entendo como. Essa história é sabida a conta-gotas nas reuniões em família, nos ‘causos’ de minha avó Dedé, nas conversas com minhas tias e nas histórias de mãe. Surgem nos momentos mais despretensiosos, quando a memória se apresenta, afetuosamente trazida por algum pequeno evento do cotidiano, acompanhada dos saberes dos mais velhos. Essas lembranças vêm como quem acorda de um sono profundo com a leveza de quem regozija o descanso e logo se livra das cobertas, levanta com um sorriso no rosto, sai do quarto e elogia o cheiro de café que toma a casa inteira tal qual se diz bom dia. Mas, apesar do aroma, isso não faz da memória um comercial de margarina. Eu não conheci o Seu Cantuária, mas sinto que a nossa história, a história da minha família, é assim, feita em palavra contada, e é assim que conto essa história.

Thomaz nasceu em 1910. Ficou órfão de mãe muito cedo e logo seu pai também adoeceu. Diante da incerteza do destino, seu pai tomou a decisão que definiria o destino do menino de apenas doze anos: o entregou aos cuidados da Marinha do Brasil e o fez aprendiz-marinheiro. À época, a Marinha operava como uma espécie de abrigo para menores de idade, um lugar para “corrigir” os jovens ditos “problemáticos”, um centro de medidas socioeducativas que recolhia crianças e adolescentes, em sua maioria negros, pobres, muitas vezes órfãos – e Thomaz acumularia em breve as três categorias da exclusão.

Um mês antes de seu nascimento, a capital do Brasil estava sob a mira dos canhões dos novíssimos couraçados Minas Geraes e São Paulo, além de outros navios cruzadores. Liderada por João Cândido, o Almirante Negro, a rebelião agia contra os castigos corporais empregados por oficiais navais brancos para punir marinheiros negros na Marinha do Brasil. O evento ficou conhecido como A Revolta da Chibata. Pouco mais de 10 anos depois, as coisas não teriam mudado tanto na instituição.

Thomaz não queria ir. Aos doze anos, ele havia perdido a mãe recentemente, lidava com o adoecimento do pai e, agora, estava fadado ao completo afastamento da família. Ele sequer possuía a idade mínima estabelecida pelo regulamento da instituição. Na época, era comum que crianças fossem aceitas se cumprissem certos parâmetros de tamanho e força, independente da idade. Assim foi feito, com um adendo: sua data de nascimento foi alterada em um ano, mudando de 1910 para 1909. Para fins legais, Thomaz agora tinha 13 anos e era um aprendiz-marinheiro.

Seu Cantuária não falava muito dessas histórias, sobre suas origens, menos ainda sobre seus pais e sua família. Ele vivia sua carreira discretamente, não exaltava as Forças Armadas nem contava vantagem sobre sua carreira ou posto. Usava seu uniforme em raras ocasiões, apenas quando estritamente necessário. Gostava mesmo era de seu violão, de tirar chorinho de ouvido, dar suas canjas em casa com a família e, ocasionalmente, com visitantes ilustres, como Altamiro Carrilho e cia. Do mesmo modo com que o afeto por sua mãe permanecia vivaz e presente, também havia uma ferida escondida, mal cicatrizada, que lhe pesava latentemente e insistia em lembrá-lo do passado. Restava descontar suas dores nas cordas com seu choro em Mi menor, como quem nina suas memórias para que durmam profundamente e nada sinta mais. Mas não há lembrança que não precise espairecer.

Estas não foram as únicas durezas institucionais que presenciou. Nos anos 60, Seu Cantuária já seria oficial da Marinha e também trabalhava como radiotelegrafista numa antiga empresa de aviação, a Panair do Brasil. Pai de 12 filhos, ele trabalhava em turnos dobrados para fazer renda extra e conseguir pagar os estudos de seus caçulas. Foi assim que sua filha cursou o técnico em química e outro filho cursou a faculdade de matemática – este, antes de concluir a graduação, abandonou os estudos para ser lateral no América. Isso deixou Seu Cantuária muito irritado, mas não é essa a história que devo contar.

A Panair é lembrada com certo romantismo por se tratar de uma das empresas pioneiras da aviação nacional e por ser a representação da adesão brasileira à modernidade. Todavia, também é reconhecida por protagonizar um caso inédito da justiça brasileira: o único caso de decreto compulsório de falência, isto é, sem pedido do credor. Após o golpe civil-militar de 1964, a empresa foi fechada da noite para o dia. Hoje sabemos que seus proprietários foram perseguidos politicamente durante a ditadura, que a falência da empresa foi decretada mesmo sem motivos para isso e que seus concorrentes foram diretamente favorecidos pelo regime.

Eram tempos difíceis. Em teoria, a repressão se dava contra os “subversivos”, aqueles que criticavam ou lutavam contra a ditadura. Deste modo, a brutalidade do Estado tinha como objetivo a manutenção do poder nas mãos dos militares, sem que houvesse questionamentos ou riscos. Para o governo, a oposição aos interesses e valores do regime não podiam ter lugar. Mas, na prática, a perseguição era muito mais ampla, pois também decorria dos contatos e das relações que você construía: bastava conhecer a pessoa certa para a ocasião que lhe fosse conveniente. Uma disputa pessoal, um aborrecimento, ciúmes ou uma discussão qualquer, não importa. Se uma pessoa fosse denunciada às forças do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ela era implacavelmente perseguida e passava pelos métodos mais degradantes e violentos para averiguação. Muitas pessoas foram denunciadas, perseguidas, torturadas e mortas por desagradar ou para beneficiar alguém, ao regime ou aos amigos do regime. Algumas pessoas nunca mais foram encontradas. As consequências foram brutais.

Nada disso se dava de modo evidente. Pouco foi noticiado nos jornais ou na televisão, pois havia censura e a mídia que restava só poderia apoiar o regime. Nas periferias, nos lugares esquecidos ainda hoje, a violência era e continua sendo ainda mais grave – na Baixada Fluminense, uma pessoa desapareceu a cada seis horas só em 2022. Não por acaso, todos nós, dos mais velhos aos mais novos, herdamos certo temor quanto ao falar sobre o que e quem nos aflige. Apesar do tempo, todos sabemos muito bem como uma denúncia pública pode desagradar a pessoa errada e acarretar em perseguição política ou em algo pior.

Agora, esse medo é propagado novamente na voz e na ação de muita gente que não compreende os riscos que a rispidez, o preconceito, a intolerância e o ódio podem impor a um país. A nossa indignação com uma realidade tão violenta não pode nos tornar espelho do que há de pior, mas sim em exemplo de superação ante todos. Não é possível construir um mundo mais respeitoso, empático e justo tomando a violência como caminho. A democracia é a proteção contra o autoritarismo, assim como a justiça é o remédio contra a barbárie. Por isso, a solução está justamente na coerência entre o que desejamos, dizemos e praticamos.

Há uma música famosa de Marcelo Yuka que diz que “paz sem voz não é paz, é medo“. Eu acredito muito nisso. O silêncio apartado da escuta de si e do outro é um forte sinal de violência. Se queremos um mundo melhor, precisamos ser melhores por inteiro também.

Ao se deparar com essas situações, as orientações de Seu Cantuária eram claras: “Arrume toda a família e saia de madrugada. Sem que pareça uma viagem e sem que ninguém os veja, leve apenas aquilo que possa carregar nas mãos”. Não se sabe ao certo quantas pessoas ele alertara. Pessoas que, por algum revés da vida, foram denunciadas e poderiam ter sido levadas para as câmaras de tortura da ditadura militar. Dos antigos vizinhos que ainda resistem à memória, minha família nunca mais soube, nunca mais foram vistos. Hoje, eles habitam na esperança de que o sumiço signifique a sobrevivência, mas há um medo velado que permanece e silencia o assunto desde então. Medo de que as pessoas erradas saibam da ajuda, medo do julgamento perante os apoiadores do regime. A ditadura passou, algumas pessoas seguiram tranquilas, mas seu silêncio se enquartela entre nós.

Antes dos anos de chumbo, lá pelo fim dos anos 40, Seu Cantuária veio do nordeste com a família e se instalou em Nilópolis, próximo ao final da Av. Mirandela. Naquele tempo, a Mirandela era uma estrada de barro onde as boiadas cruzavam cotidianamente em direção ao antigo matadouro. Todos os dias, centenas de trabalhadores também se deslocavam até o centro de Nilópolis para tomar a condução com destino ao Rio de Janeiro, capital do país. Quando chovia, tudo virava um grande lamaçal, o que tornava chegar ao ponto de ônibus ou à estação de trem sem se enlamear uma missão quase impossível. Os poucos ônibus que já serviam ao bairro não só atrasavam como passavam imundos de barro, tanto por dentro quanto por fora, o que causava grande sentimento de revolta nos moradores, principalmente durante o período de chuva.

Certa vez, em mais uma viagem de ônibus pela lama, houve um grande burburinho entre os passageiros. Indignado por nada ser feito, Seu Cantuária sugeriu que todos os vizinhos boicotassem a empresa até que a limpeza dos ônibus fosse feita. O discurso conquistou seus colegas de condução, que logo aderiram à medida proposta. No outro dia, empenhado em sua manifestação, Seu Cantuária guardou a farda na bolsa e vestiu uma roupa simples para a caminhada. Calçou suas humildes sandálias e as cobriu com sacos plásticos amarrados nas canelas para assim enfrentar o lamaçal até o centro de Nilópolis. Mesmo diante de um dilúvio, ele não daria um único centavo para o ônibus até que a empresa garantisse um serviço digno para os passageiros. Ao sair pela porta de casa e tomar o caminho do brejo, o ônibus cruza seu caminho, lotado de vizinhos com sorrisos amarelos e explicações embaraçadas.

É curioso pensar como essas histórias dizem tanto sobre minhas experiências no mundo – na família, na arte, na política e até no transporte público. Meu avô nasceu na Bahia, mas viveu até seus últimos dias em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Eu não tive a oportunidade de conhecê-lo, mas tive a sorte de saber algumas de suas histórias. Assim, compreendo um pouco mais sobre a minha também. E, pelo cheiro que sinto aqui do quarto, o café está delicioso.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Missão cumprida: a Casa Dulce Seixas agora tem CNPJ

Na primeira vez que visitei a Casa Dulce Seixas, eu estava tão encantado com a iniciativa que não preparei meu espírito para as histórias de vida que ouvi. Algumas histórias pertenciam a um passado distante, cujas dores haviam se tornado latentes; mas outras histórias estavam ali, vivas e vividas há poucas horas daquele encontro. Foi assim que conheci a história da amiga Shirley Berssey, coordenadora da casa, e a história de cada uma das pessoas acolhidas ali. Foi quando entendi como aquela casa de axé abrigou gente de todos os cantos que, na pandemia, se viu sem lugar no mundo. Shirley decidiu repartir tudo com quem nunca teve o direito de ter a si mesmo e ofereceu ajuda a quem precisava se encontrar.

Nova Iguaçu, 21 de maio de 2022. Conhecendo a Shirley, os acolhidos e a Casa Dulce Seixas.

Perante tanta dificuldade e incerteza, naquele mesmo dia, a gente conversou e concordou que buscar a autonomia da Casa seria o melhor plano. O CNPJ era fundamental para que a Casa não dependesse apenas das ajudas individuais ou de negociações políticas e eleitorais. Falei então com o Gabriel Bruno, que ainda construía minha candidatura e depois passou a trabalhar com o deputado federal David Miranda, também do PDT. A gente sabia que o David tinha um longo histórico de apoio à causa LGBTQIANP+ e que seu mandato toparia ajudar. Graças à articulação e à união de forças, deu tudo certo!

A gente não ganhou a eleição, mas, hoje, o único local de acolhimento para pessoas LGBTQIANP+ da Baixada Fluminense conseguiu, enfim, seu tão sonhado CNPJ. Isso será fundamental para possibilitar a captação de recursos, dar autonomia e fortalecer não só a Casa Dulce Seixas, mas a justiça social na BXD também. Uma porta foi aberta, afinal.

Fico emocionado ao escrever esse texto, pois agora me encaro no espelho e compreendo com clareza as razões pelo sufoco que a gente passou e o perrengue com que ainda lido. Aprendi nessa eleição como quem bebe um vinho muito amargo que reserva um retrogosto doce feito mel – e todo mundo sabe o quanto eu adoro doce, mas detesto amargura. David Miranda, Adriano, Danilo, Davlyn, Gabriel, Gustavo, Luz, Polly, Tamires e todo mundo que contribuiu nessa empreitada, essa conquista é de vocês também. Obrigado por terem topado essa loucura toda. Missão cumprida, né?

É verdade, a gente não ganhou a eleição de 2022, nem perto disso. Pelo contrário, o resultado eleitoral ficou muito aquém diante do tanto que a gente ralou por um bom resultado. Mas, tal como em 2020, antes mesmo de começar, muita coisa deu errado e muito do que fora planejado simplesmente ruiu. Parcerias não se concretizaram, promessas não foram cumpridas, problemas gravíssimos de saúde prejudicaram parceiros, obstáculos inesperados foram postos no caminho e o fogo amigo colocou a cereja no bolo. Mas, então, por que não desisti?

Nova Iguaçu, 26 de julho de 2022. Apresentando a Casa Dulce Seixas para o deputado federal David Miranda.

Eu não acredito que as eleições mudam as coisas. Eu acredito que a gente muda as coisas. Eleições são como chaves que abrem as portas para o diálogo, para o território e para o mundo que a gente quer. É possível que não nos deixem entrar nunca, mas a gente pode abrir uma janela para que alguém consiga pular e caminhar por lá. Por isso, se a gente pudesse potencializar as forças da BXD e das periferias do Rio, se a gente conseguisse ajudar pelo menos um de nós a avançar, todo o sacrifício valeria a pena. Por isso que eu decidi abrir mão, sim, mas decidi abrir mão de outras coisas. Abri mão do meu emprego, da minha parca segurança financeira e das minhas realizações profissionais, montei uma equipe potente, dobrei as tarefas, virei noites sem dormir e perdi alguns cabelos pelo caminho. Todo mundo que colou junto fez muitos sacrifícios também. 

Já desisti de muita coisa na vida. Apesar de muito competitivo, eu não tenho o menor pudor de assumir minhas derrotas. Porém, desistir ali seria injusto comigo e com quem topou a missão de fazer política na BXD coletivamente, seria injusto demais com toda a trajetória que a gente construiu junto e misturado. Com o tempo, a gente aprende que nem sempre há tempo para rascunho. Aqui a gente sempre atua nas frestas da vida, hackeando o sistema e aproveitando os espaços que se apresentam, sem soltar a mão de ninguém. Junto, a gente decidiu que não poderia abrir mão dessa oportunidade.

Durante as eleições de 2010, a então futura presidenta Dilma Rousseff disse em uma entrevista coletiva que não importava se quem vai ganhar ou quem vai perder vai ganhar ou perder, pois todo mundo iria perder de alguma maneira. Já em 2014, a então candidata Marina Silva diria que não queria nada a qualquer custo, pois preferia perder ganhando a ganhar perdendo. Parece confuso, mas, depois de três eleições, eu não poderia concordar mais com elas. Tal qual Darcy Ribeiro, hoje eu sei que posso ter fracassado em muita coisa que tentei na vida, mas os fracassos também são minhas vitórias. E eu tenho certeza que, assim como ele, eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

A Baixada da gente é a gente quem faz todo dia. E eu boto muita fé nas nossas potências!

Nova Iguaçu, 20 de janeiro de 2023. Comemorando com a vizinhança a formalização da Casa Dulce Seixas. Agora a Casa tem CNPJ!

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Leitura: A América Latina existe?

Tenho conversado muito com Darcy. Na verdade, me impressiona seu caráter futurista, a frente não só do seu, mas do nosso tempo também. Talvez eu venha compensando minha abstemia e ausências no Bar do Binho com suas leituras. Leio Darcy como se conversássemos na mesa de um boteco e isso é ótimo.

Minha primeira leitura concluída em 2023 foi desse livreto aqui: A América Latina existe?, de Darcy Ribeiro. A obra compõe uma coleção de dez pequenos livros chamada Darcy no bolso. Com pouco mais de 100 páginas cada, nos quais seus pensamentos e relatos foram organizados como um diário.

No decorrer do ano, eu provavelmente compartilharei mais sobre ele com vocês. Quem sabe um mini-curso? Não sei, vamos ver se ele topa.

É evidente que há certa anacronia em meus julgamentos quando me deparo com alguns de seus relatos e hábitos que compartilha debochadamente, qual um homem vivido em meados do século XX com seu copo de cerveja na mão (imagino eu). Entretanto, sua abordagem de pautas que, ainda hoje, são tabus em setores das esquerdas ou mesmo do trabalhismo são surpreendentes.

Na obra, Darcy explica como o racismo e a violência destituíram os povos de suas identidades e culturas, tudo sob o interesse das classes dominantes – antes, pelo colonialismo escravocrata europeu; depois, pela exploração das corporações capitalistas. A compreensão do racismo é central para entender o Brasil e a América Latina.

Diante disso, Darcy acredita que, no futuro, os latino-americanos construam uma “entidade política supranacional” para que possam determinar suas próprias vidas e caminhos, com destaque para as nacionalidades indígenas ainda tão oprimidas. Para Darcy, a nacionalidade como conhecemos só faz sentido para aqueles que detêm algum nível de equidade, o que é inviável perante o racismo brutal que permanece.

Ideias como mecanismos políticos de auto-organização, participação e controle popular, meios de construção coletiva de outras realidades e de garantir boa vida ou mesmo a possibilidade de instituirmos estados plurinacionais frente ao capitalismo dependente das classes dominantes de toda a América Latina ainda são vistas com ressalvas pela maioria das esquerdas. Porém, elas habitavam encantadas na mente deste centenário senhor.

E, por falar em encantaria, ao denunciar a tentativa de doutrinação cristã sobre os povos da floresta e seu genocídio no Brasil, Darcy denuncia tais “infiéis” que corroboram com a invasão e destruição de terras indígenas. Atual, né?

Darcy defendeu um Povo Latino-Americano que um dia há de sarar as feridas abertas de seu passado para jamais repeti-los, um povo que há de valorizar suas potências enquanto herdeiro das sabedorias dos povos da floresta, do páramo, de África e dos mares do sul.

Debaixo do sol, o ar escaldante derretia ao encontrar a garrafa estupidamente gelada que suava sobre a mesa como quem peleja pelo Brasil que pode ser e há de ser. O líquido dourado cintilava sob o alvo colarinho que escorria sedutoramente pelo copo americano que, não por coincidência, é brasileiro. Brindamos.

Sugestão de leitura:

RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Coleção Darcy no bolso, vol. 1. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB, 2010. Link para adquirir: https://amzn.to/3IYiJJi

________________. O Brasil como problema. Coleção Darcy no bolso, vol. 2. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB, 2010. Link para adquirir: https://amzn.to/3IVbIJh

________________. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2014. Link para adquirir: https://amzn.to/3Xpkow0

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.