Baixada Fluminense

Histórias de Seu Cantuária

Na última semana, perdi um tio. Foi o sexto tio que faleceu em apenas dois anos. Depois de tantas perdas em um período tão curto e difícil para a vida, a gente aprende que a morte não traz apenas a dor e o luto, mas também muita burocracia. Foi vasculhando alguns papéis antigos da família que encontrei os documentos do Seu Cantuária.

Ao conferir os documentos, vi que Thomaz Cantuária nasceu em 29 de dezembro de 1909 na cidade de Cachoeira, terra de Caramuru, às margens do Rio Paraguaçu, na Bahia. Porém, há uma outra história que os papéis não contam, uma história que eu conheço e mal entendo como. Essa história é sabida a conta-gotas nas reuniões em família, nos ‘causos’ de minha avó Dedé, nas conversas com minhas tias e nas histórias de mãe. Surgem nos momentos mais despretensiosos, quando a memória se apresenta, afetuosamente trazida por algum pequeno evento do cotidiano, acompanhada dos saberes dos mais velhos. Essas lembranças vêm como quem acorda de um sono profundo com a leveza de quem regozija o descanso e logo se livra das cobertas, levanta com um sorriso no rosto, sai do quarto e elogia o cheiro de café que toma a casa inteira tal qual se diz bom dia. Mas, apesar do aroma, isso não faz da memória um comercial de margarina. Eu não conheci o Seu Cantuária, mas sinto que a nossa história, a história da minha família, é assim, feita em palavra contada, e é assim que conto essa história.

Thomaz nasceu em 1910. Ficou órfão de mãe muito cedo e logo seu pai também adoeceu. Diante da incerteza do destino, seu pai tomou a decisão que definiria o destino do menino de apenas doze anos: o entregou aos cuidados da Marinha do Brasil e o fez aprendiz-marinheiro. À época, a Marinha operava como uma espécie de abrigo para menores de idade, um lugar para “corrigir” os jovens ditos “problemáticos”, um centro de medidas socioeducativas que recolhia crianças e adolescentes, em sua maioria negros, pobres, muitas vezes órfãos – e Thomaz acumularia em breve as três categorias da exclusão.

Um mês antes de seu nascimento, a capital do Brasil estava sob a mira dos canhões dos novíssimos couraçados Minas Geraes e São Paulo, além de outros navios cruzadores. Liderada por João Cândido, o Almirante Negro, a rebelião agia contra os castigos corporais empregados por oficiais navais brancos para punir marinheiros negros na Marinha do Brasil. O evento ficou conhecido como A Revolta da Chibata. Pouco mais de 10 anos depois, as coisas não teriam mudado tanto na instituição.

Thomaz não queria ir. Aos doze anos, ele havia perdido a mãe recentemente, lidava com o adoecimento do pai e, agora, estava fadado ao completo afastamento da família. Ele sequer possuía a idade mínima estabelecida pelo regulamento da instituição. Na época, era comum que crianças fossem aceitas se cumprissem certos parâmetros de tamanho e força, independente da idade. Assim foi feito, com um adendo: sua data de nascimento foi alterada em um ano, mudando de 1910 para 1909. Para fins legais, Thomaz agora tinha 13 anos e era um aprendiz-marinheiro.

Seu Cantuária não falava muito dessas histórias, sobre suas origens, menos ainda sobre seus pais e sua família. Ele vivia sua carreira discretamente, não exaltava as Forças Armadas nem contava vantagem sobre sua carreira ou posto. Usava seu uniforme em raras ocasiões, apenas quando estritamente necessário. Gostava mesmo era de seu violão, de tirar chorinho de ouvido, dar suas canjas em casa com a família e, ocasionalmente, com visitantes ilustres, como Altamiro Carrilho e cia. Do mesmo modo com que o afeto por sua mãe permanecia vivaz e presente, também havia uma ferida escondida, mal cicatrizada, que lhe pesava latentemente e insistia em lembrá-lo do passado. Restava descontar suas dores nas cordas com seu choro em Mi menor, como quem nina suas memórias para que durmam profundamente e nada sinta mais. Mas não há lembrança que não precise espairecer.

Estas não foram as únicas durezas institucionais que presenciou. Nos anos 60, Seu Cantuária já seria oficial da Marinha e também trabalhava como radiotelegrafista numa antiga empresa de aviação, a Panair do Brasil. Pai de 12 filhos, ele trabalhava em turnos dobrados para fazer renda extra e conseguir pagar os estudos de seus caçulas. Foi assim que sua filha cursou o técnico em química e outro filho cursou a faculdade de matemática – este, antes de concluir a graduação, abandonou os estudos para ser lateral no América. Isso deixou Seu Cantuária muito irritado, mas não é essa a história que devo contar.

A Panair é lembrada com certo romantismo por se tratar de uma das empresas pioneiras da aviação nacional e por ser a representação da adesão brasileira à modernidade. Todavia, também é reconhecida por protagonizar um caso inédito da justiça brasileira: o único caso de decreto compulsório de falência, isto é, sem pedido do credor. Após o golpe civil-militar de 1964, a empresa foi fechada da noite para o dia. Hoje sabemos que seus proprietários foram perseguidos politicamente durante a ditadura, que a falência da empresa foi decretada mesmo sem motivos para isso e que seus concorrentes foram diretamente favorecidos pelo regime.

Eram tempos difíceis. Em teoria, a repressão se dava contra os “subversivos”, aqueles que criticavam ou lutavam contra a ditadura. Deste modo, a brutalidade do Estado tinha como objetivo a manutenção do poder nas mãos dos militares, sem que houvesse questionamentos ou riscos. Para o governo, a oposição aos interesses e valores do regime não podiam ter lugar. Mas, na prática, a perseguição era muito mais ampla, pois também decorria dos contatos e das relações que você construía: bastava conhecer a pessoa certa para a ocasião que lhe fosse conveniente. Uma disputa pessoal, um aborrecimento, ciúmes ou uma discussão qualquer, não importa. Se uma pessoa fosse denunciada às forças do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ela era implacavelmente perseguida e passava pelos métodos mais degradantes e violentos para averiguação. Muitas pessoas foram denunciadas, perseguidas, torturadas e mortas por desagradar ou para beneficiar alguém, ao regime ou aos amigos do regime. Algumas pessoas nunca mais foram encontradas. As consequências foram brutais.

Nada disso se dava de modo evidente. Pouco foi noticiado nos jornais ou na televisão, pois havia censura e a mídia que restava só poderia apoiar o regime. Nas periferias, nos lugares esquecidos ainda hoje, a violência era e continua sendo ainda mais grave – na Baixada Fluminense, uma pessoa desapareceu a cada seis horas só em 2022. Não por acaso, todos nós, dos mais velhos aos mais novos, herdamos certo temor quanto ao falar sobre o que e quem nos aflige. Apesar do tempo, todos sabemos muito bem como uma denúncia pública pode desagradar a pessoa errada e acarretar em perseguição política ou em algo pior.

Agora, esse medo é propagado novamente na voz e na ação de muita gente que não compreende os riscos que a rispidez, o preconceito, a intolerância e o ódio podem impor a um país. A nossa indignação com uma realidade tão violenta não pode nos tornar espelho do que há de pior, mas sim em exemplo de superação ante todos. Não é possível construir um mundo mais respeitoso, empático e justo tomando a violência como caminho. A democracia é a proteção contra o autoritarismo, assim como a justiça é o remédio contra a barbárie. Por isso, a solução está justamente na coerência entre o que desejamos, dizemos e praticamos.

Há uma música famosa de Marcelo Yuka que diz que “paz sem voz não é paz, é medo“. Eu acredito muito nisso. O silêncio apartado da escuta de si e do outro é um forte sinal de violência. Se queremos um mundo melhor, precisamos ser melhores por inteiro também.

Ao se deparar com essas situações, as orientações de Seu Cantuária eram claras: “Arrume toda a família e saia de madrugada. Sem que pareça uma viagem e sem que ninguém os veja, leve apenas aquilo que possa carregar nas mãos”. Não se sabe ao certo quantas pessoas ele alertara. Pessoas que, por algum revés da vida, foram denunciadas e poderiam ter sido levadas para as câmaras de tortura da ditadura militar. Dos antigos vizinhos que ainda resistem à memória, minha família nunca mais soube, nunca mais foram vistos. Hoje, eles habitam na esperança de que o sumiço signifique a sobrevivência, mas há um medo velado que permanece e silencia o assunto desde então. Medo de que as pessoas erradas saibam da ajuda, medo do julgamento perante os apoiadores do regime. A ditadura passou, algumas pessoas seguiram tranquilas, mas seu silêncio se enquartela entre nós.

Antes dos anos de chumbo, lá pelo fim dos anos 40, Seu Cantuária veio do nordeste com a família e se instalou em Nilópolis, próximo ao final da Av. Mirandela. Naquele tempo, a Mirandela era uma estrada de barro onde as boiadas cruzavam cotidianamente em direção ao antigo matadouro. Todos os dias, centenas de trabalhadores também se deslocavam até o centro de Nilópolis para tomar a condução com destino ao Rio de Janeiro, capital do país. Quando chovia, tudo virava um grande lamaçal, o que tornava chegar ao ponto de ônibus ou à estação de trem sem se enlamear uma missão quase impossível. Os poucos ônibus que já serviam ao bairro não só atrasavam como passavam imundos de barro, tanto por dentro quanto por fora, o que causava grande sentimento de revolta nos moradores, principalmente durante o período de chuva.

Certa vez, em mais uma viagem de ônibus pela lama, houve um grande burburinho entre os passageiros. Indignado por nada ser feito, Seu Cantuária sugeriu que todos os vizinhos boicotassem a empresa até que a limpeza dos ônibus fosse feita. O discurso conquistou seus colegas de condução, que logo aderiram à medida proposta. No outro dia, empenhado em sua manifestação, Seu Cantuária guardou a farda na bolsa e vestiu uma roupa simples para a caminhada. Calçou suas humildes sandálias e as cobriu com sacos plásticos amarrados nas canelas para assim enfrentar o lamaçal até o centro de Nilópolis. Mesmo diante de um dilúvio, ele não daria um único centavo para o ônibus até que a empresa garantisse um serviço digno para os passageiros. Ao sair pela porta de casa e tomar o caminho do brejo, o ônibus cruza seu caminho, lotado de vizinhos com sorrisos amarelos e explicações embaraçadas.

É curioso pensar como essas histórias dizem tanto sobre minhas experiências no mundo – na família, na arte, na política e até no transporte público. Meu avô nasceu na Bahia, mas viveu até seus últimos dias em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Eu não tive a oportunidade de conhecê-lo, mas tive a sorte de saber algumas de suas histórias. Assim, compreendo um pouco mais sobre a minha também. E, pelo cheiro que sinto aqui do quarto, o café está delicioso.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Missão cumprida: a Casa Dulce Seixas agora tem CNPJ

Na primeira vez que visitei a Casa Dulce Seixas, eu estava tão encantado com a iniciativa que não preparei meu espírito para as histórias de vida que ouvi. Algumas histórias pertenciam a um passado distante, cujas dores haviam se tornado latentes; mas outras histórias estavam ali, vivas e vividas há poucas horas daquele encontro. Foi assim que conheci a história da amiga Shirley Berssey, coordenadora da casa, e a história de cada uma das pessoas acolhidas ali. Foi quando entendi como aquela casa de axé abrigou gente de todos os cantos que, na pandemia, se viu sem lugar no mundo. Shirley decidiu repartir tudo com quem nunca teve o direito de ter a si mesmo e ofereceu ajuda a quem precisava se encontrar.

Nova Iguaçu, 21 de maio de 2022. Conhecendo a Shirley, os acolhidos e a Casa Dulce Seixas.

Perante tanta dificuldade e incerteza, naquele mesmo dia, a gente conversou e concordou que buscar a autonomia da Casa seria o melhor plano. O CNPJ era fundamental para que a Casa não dependesse apenas das ajudas individuais ou de negociações políticas e eleitorais. Falei então com o Gabriel Bruno, que ainda construía minha candidatura e depois passou a trabalhar com o deputado federal David Miranda, também do PDT. A gente sabia que o David tinha um longo histórico de apoio à causa LGBTQIANP+ e que seu mandato toparia ajudar. Graças à articulação e à união de forças, deu tudo certo!

A gente não ganhou a eleição, mas, hoje, o único local de acolhimento para pessoas LGBTQIANP+ da Baixada Fluminense conseguiu, enfim, seu tão sonhado CNPJ. Isso será fundamental para possibilitar a captação de recursos, dar autonomia e fortalecer não só a Casa Dulce Seixas, mas a justiça social na BXD também. Uma porta foi aberta, afinal.

Fico emocionado ao escrever esse texto, pois agora me encaro no espelho e compreendo com clareza as razões pelo sufoco que a gente passou e o perrengue com que ainda lido. Aprendi nessa eleição como quem bebe um vinho muito amargo que reserva um retrogosto doce feito mel – e todo mundo sabe o quanto eu adoro doce, mas detesto amargura. David Miranda, Adriano, Danilo, Davlyn, Gabriel, Gustavo, Luz, Polly, Tamires e todo mundo que contribuiu nessa empreitada, essa conquista é de vocês também. Obrigado por terem topado essa loucura toda. Missão cumprida, né?

É verdade, a gente não ganhou a eleição de 2022, nem perto disso. Pelo contrário, o resultado eleitoral ficou muito aquém diante do tanto que a gente ralou por um bom resultado. Mas, tal como em 2020, antes mesmo de começar, muita coisa deu errado e muito do que fora planejado simplesmente ruiu. Parcerias não se concretizaram, promessas não foram cumpridas, problemas gravíssimos de saúde prejudicaram parceiros, obstáculos inesperados foram postos no caminho e o fogo amigo colocou a cereja no bolo. Mas, então, por que não desisti?

Nova Iguaçu, 26 de julho de 2022. Apresentando a Casa Dulce Seixas para o deputado federal David Miranda.

Eu não acredito que as eleições mudam as coisas. Eu acredito que a gente muda as coisas. Eleições são como chaves que abrem as portas para o diálogo, para o território e para o mundo que a gente quer. É possível que não nos deixem entrar nunca, mas a gente pode abrir uma janela para que alguém consiga pular e caminhar por lá. Por isso, se a gente pudesse potencializar as forças da BXD e das periferias do Rio, se a gente conseguisse ajudar pelo menos um de nós a avançar, todo o sacrifício valeria a pena. Por isso que eu decidi abrir mão, sim, mas decidi abrir mão de outras coisas. Abri mão do meu emprego, da minha parca segurança financeira e das minhas realizações profissionais, montei uma equipe potente, dobrei as tarefas, virei noites sem dormir e perdi alguns cabelos pelo caminho. Todo mundo que colou junto fez muitos sacrifícios também. 

Já desisti de muita coisa na vida. Apesar de muito competitivo, eu não tenho o menor pudor de assumir minhas derrotas. Porém, desistir ali seria injusto comigo e com quem topou a missão de fazer política na BXD coletivamente, seria injusto demais com toda a trajetória que a gente construiu junto e misturado. Com o tempo, a gente aprende que nem sempre há tempo para rascunho. Aqui a gente sempre atua nas frestas da vida, hackeando o sistema e aproveitando os espaços que se apresentam, sem soltar a mão de ninguém. Junto, a gente decidiu que não poderia abrir mão dessa oportunidade.

Durante as eleições de 2010, a então futura presidenta Dilma Rousseff disse em uma entrevista coletiva que não importava se quem vai ganhar ou quem vai perder vai ganhar ou perder, pois todo mundo iria perder de alguma maneira. Já em 2014, a então candidata Marina Silva diria que não queria nada a qualquer custo, pois preferia perder ganhando a ganhar perdendo. Parece confuso, mas, depois de três eleições, eu não poderia concordar mais com elas. Tal qual Darcy Ribeiro, hoje eu sei que posso ter fracassado em muita coisa que tentei na vida, mas os fracassos também são minhas vitórias. E eu tenho certeza que, assim como ele, eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

A Baixada da gente é a gente quem faz todo dia. E eu boto muita fé nas nossas potências!

Nova Iguaçu, 20 de janeiro de 2023. Comemorando com a vizinhança a formalização da Casa Dulce Seixas. Agora a Casa tem CNPJ!

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Mãos ao alto: R$ 7 é um assalto

Em 2013, ao escrever sobre o aumento das passagens em Nilópolis, cravei que a cidade possuía o quilômetro rodado mais caro do Brasil. Desde então, sempre que acordo e descubro um novo reajuste nas tarifas, me sinto como Bill Murray em Feitiço do Tempo e revejo o velho texto.

Há quase 10 anos, na esteira das mobilizações que tomaram as ruas por todo o país, nossa mobilização colocou milhares de pessoas nas ruas de Nilópolis, forçando o então prefeito Alessandro Calazans a voltar atrás. Sim, nós barramos o aumento das passagens dos ônibus municipais.

O contexto político e econômico agora é outro. Tal como o Brasil, o estado do RJ afundou numa crise sem precedentes. Perdemos 800 mil empregos só nos últimos 5 anos e, hoje, somos 1,5 milhão de desempregados e 2 milhões em situação de pobreza, todos sem perspectiva de mudança.

O que também não muda é o impacto de um transporte caro e precário sobre a vida das pessoas. Naturalizamos o movimento pendular ao trabalhar ou estudar longe de casa e voltar ao fim do dia. Essa bola de demolição é a exploração extra de quem vive nos subúrbios e nas periferias.

De acordo com o Mapa das Desigualdades produzido pela Casa Fluminense, cerca de 42% dos moradores de Nilópolis que possuem vida profissional ativa trabalham no Rio de Janeiro. Muitos estudantes e pessoas em busca de serviços diversos também se deslocam diariamente rumo à capital.

A forma mais barata de se chegar ao Rio ainda é pelos trens da SuperVia. Entretanto, a passagem que hoje já custa R$ 5 chegará aos R$ 7 a partir de fevereiro. Em muitos casos, ainda é preciso tomar mais um ônibus ou o metrô, cuja tarifa por meio do Bilhete Único totaliza R$ 8,55.

Assim, se esse morador de Nilópolis for 5 dias por semana ao Rio, seu custo mensal é de pelo menos R$ 342, podendo chegar à marca anual de R$ 4.446. Isto é, o estudante, trabalhador e/ou empregador precisa arcar com mais de 4 salários-mínimos apenas para despesas de deslocamento.

Nilópolis, 1975 / Jornal do Brasil

E se, por acaso, esse mesmo nilopolitano ainda carecer de um ônibus municipal para chegar à estação de trem, a conta pode chegar a incríveis R$ 25,00 por dia ou R$ 500,00 por mês. São R$ 6.500,00 por ano, sem incluir alimentação e outros gastos essenciais. Dá mesmo pra se viver?

Com o aumento das tarifas, agrava-se também a dificuldade de contratação de quem mora nos subúrbios e periferias. Devido ao alto custo de seu deslocamento, as raras e já muito concorridas vagas de emprego sempre serão destinadas àqueles que demandam um menor custo ao empregador.

Por isso, não é incomum vermos trabalhadores arcarem com o valor parcial ou total de sua passagem, além dos 6% descontados de seu salário para o vale-transporte. Na atual conjuntura, muitos topam pagar para conseguir algum emprego, exemplo da brutal precarização da vida no Rio.

O transporte público, afinal, se tornou o principal custo diário dos trabalhadores nas metrópoles afora. No Rio, a ineficiência do serviço é acentuada pelas desigualdades e por seu histórico projeto de gentrificação — empregos em zonas nobres e distantes da maioria da população.

Neste cenário, fica evidente que qualquer reajuste é perverso e injusto. Para debater a questão com seriedade, é preciso democratizar o processo, com uma efetiva transparência nas contas das empresas do transporte público e ampla participação popular nas análises e nas decisões.

Mais do que isso, combater a crise no Rio é enfrentar seu projeto histórico de apartamento e apagamento do povo, dos centros para o subúrbio, Baixada e favelas. Só construiremos uma cidade mais justa, democrática e para as pessoas por meio de uma efetiva e popular Reforma Urbana.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

 

Natal sem água na Baixada e a privatização da CEDAE

Na Baixada Fluminense, muitas casas tiveram seu Natal atravessado por um antigo problema da região: a falta d’água. Não bastasse a penúria que recaiu sobre a ceia das famílias, moradores de Nova Iguaçu, Mesquita, Japeri e imediações também ficaram sem água em plena noite de Natal.

Segundo a concessionária Águas do Rio, um reparo de emergência foi necessário, causando o transtorno. Na antevéspera, a chuva também causou interrupção.

– Como é que eu vou fazer as coisas de Natal? Alguém tem que fazer alguma coisa – disse a moradora iguaçuana Flavia Amaral.

Alguém fez. Em agosto, o governo Cláudio Castro privatizou por regime de concessão a distribuição de água e a coleta de esgoto de boa parte da região metropolitana do Rio. Exceto na Zona Oeste que, devido ao conflito territorial com milícias, a concessão não atraiu compradores.

Assim, enquanto a CEDAE se mantém responsável por captar e tratar a água, a nova concessionária Águas do Rio – uma empresa da Aegea Saneamento – fica responsável pelos demais serviços. O novo consórcio possui como sócios a Equipav, o GIC (Fundo Soberano de Cingapura) e a Itaúsa.

A medida segue na contramão de diversas cidades ao redor do mundo que tiveram o tratamento e a distribuição de água privatizados nos últimos anos e, hoje, retomam o controle através da reestatização dos respectivos equipamentos e serviços públicos.

Paris, Berlim, Buenos Aires, La Paz e outras centenas de cidades passaram a reconhecer a água como direito e a enfrentar a precarização do serviço ao modificar a lógica que valoriza o interesse privado (lucro) em detrimento do interesse público sobre itens essenciais à vida.

Se a água enquanto direito não deve ser tratada como uma simples commodity, como mera mercadoria suscetível ao lucro e aos interesses privados, as mudanças ambientais agravam esse cenário. Hoje, a água se mostra como recurso estratégico para o futuro e a vida do planeta.

Até então, a CEDAE fora uma empresa pública lucrativa para o governo do estado, mas sofreu com anos de precarização e falta de investimentos. A experiência Brasil e mundo afora, porém, mostra que a privatização também não garantiu saneamento básico adequado para as pessoas.

Em 2022, nos resta escolher o melhor governo para a necessária reconstrução do estado do Rio de Janeiro, tendo em vista uma política aliada ao resgate de valores inegociáveis: a defesa do meio ambiente e a garantia de direitos. O lucro não pode estar acima da vida.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Municipalização do Hospital de Saracuruna e a Baixada Fluminense

A prefeitura de Duque de Caxias anunciou sua intenção de municipalizar o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, mais conhecido como Hospital de Saracuruna, na Baixada Fluminense. Quais são os impactos disso sobre a Baixada Fluminense?

A prefeitura já havia assumido a cogestão do hospital em julho de 2020, em meio à pandemia. Depois, o hospital ficou sob nova direção privada, apesar das diversas denúncias sobre o processo para sua escolha. Diante da precarização dos serviços e dos atrasos sobre salários e benefícios dos profissionais, desde outubro, uma outra organização social (OS) administra o hospital.

Entretanto, nesta quinta-feira, dia 10, o Governo do Estado recuou da decisão. Enquanto o governador Cláudio Castro (PL) diz ter firmado apenas um termo de compromisso para melhoria do atendimento no hospital, o prefeito Washington Reis (MDB) disse que a cidade tem plena capacidade de administrar o Hospital de Saracuruna, ao apresentar um protocolo de intenções favorável à municipalização.

Dito isto, a proposta de municipalização pode parecer boa, não é mesmo? A própria descentralização da gestão e das políticas de saúde no país – realizada entre a União, os estados e os municípios de forma integrada – é um dos princípios organizativos do Sistema Único de Saúde – SUS. Entretanto, precisamos analisar os dados mais a fundo.

Dados do Ministério da Saúde apontam que:

– Enquanto a cobertura de atenção básica no Rio alcança 58,94% da população, em Caxias ela alcança 45,41%;

– Já a cobertura de equipes da família no Rio é de 47,55%, enquanto em Duque de Caxias é de 29,26%;

– Se 33% das gestantes têm consulta pré-natal no Rio, Caxias atende apenas 5%.

Em nota, o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (COSEMS/RJ) alerta para o perfil regional do Hospital de Saracuruna, inclusive de caráter estadual para alguns procedimentos. A unidade é a principal referência para casos de trauma e alta complexidade na região.

“Vale ressaltar que a unidade é a principal referência para casos de trauma da Baixada Fluminense, e que, 50% dos pacientes críticos (vaga zero) tem nessa unidade sua referência, além de estar localizada numa região que possui a menor relação leito/habitante de todo Estado do Rio de Janeiro (0,6/1000 habitante)”, afirma Rodrigo Oliveira, presidente do Cosems-RJ e secretário municipal de saúde de Niterói. 

A municipalização também é contestada pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público, pela Assembleia Legislativa (ALERJ) e pelas próprias secretarias municipais de saúde dos municípios da Baixada Fluminense.

Por isso, para estabelecer critérios efetivos de garantia de acesso à saúde, qualquer iniciativa desse tipo não pode ser tomada sem um amplo debate entre os gestores municipais e estadual. Esse é um debate que deve ser municipalizado, mas travado, no mínimo, por toda a Região Metropolitana.

Vale lembrarmos os fundamentos doutrinários e organizativos do SUS: a universalização, a equidade, a integralidade, a descentralização e a participação popular.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.