Política

O poder dos bancos e o crédito consignado

O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi (PDT), articulou a mudança do teto de juros cobrados aos beneficiários do INSS. Reivindicada por aposentados, a proposta foi aprovada pelo Conselho Nacional de Previdência Social e reduziu os juros de 2,14% para 1,70% por mês. Isso significa que os empréstimos consignados, aqueles descontados diretamente na folha de pagamento ou no benefício (logo, créditos muito seguros para o banco credor), passariam a ter juros aproximadamente 20% mais baixos.

Surpreendentemente, os 0,44% a menos numa das transações de crédito mais seguras do mercado desencadearam reações diversas e instalou uma verdadeira confusão no governo e neste verdadeiro balcão de empréstimo consignado do Brasil. Os bancos, tanto os privados quanto os públicos, imediatamente retiraram a oferta de crédito consignado de seus serviços; alguns setores do governo Lula relataram certo “ruído” na comunicação entre os ministérios e outros criticaram o ministro Carlos Lupi pela ação solitária; e até os vendedores de crédito consignado esbravejaram contra o ministro, insatisfeitos com a consequente retirada do produto do mercado – uma vez que diversas empresas vendem crédito consignado e recebem um percentual estabelecido pelos bancos como comissão.

Essa confusão ilustra bem a complexidade das disputas que se dão tanto internamente no atual governo quanto na economia brasileira. Os bancos públicos tiveram papel fundamental nos dois primeiros governos de Lula, seja para interferência no mercado com o objetivo de reduzir as taxas de serviços e de juros entre os bancos, seja para a garantia de direitos sociais por meio de políticas públicas, como o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida, por exemplo. Entretanto, as evidentes disputas entre as políticas públicas de cunho social e as contraditórias autonomias do Banco Central e dos bancos públicos, que interferem diretamente na aplicabilidade e efetividade de políticas de cunho econômico, colocam o terceiro Governo Lula sob outra perspectiva.

Como se não fosse o bastante, mesmo descontados os custos operacionais dos bancos públicos brasileiros, seus faturamentos operam na casa das dezenas de bilhões de reais. Para se ter uma ideia, enquanto a Caixa Econômica Federal conseguiu um lucro líquido de pelo menos R$ 7,6 bilhões (ainda não anunciou o resultado do quarto trimestre do ano passado), o Banco do Brasil obteve o lucro líquido recorde de R$ 31,8 bilhões em 2022. Esta receita acaba dividida entre seus acionistas, mas poderia ser estrategicamente revertida em investimentos nos seus próprios serviços, a fim de auxiliar seus mais de 200 milhões de clientes no enfrentamento à crise econômica e na retomada do desenvolvimento do país.

Porém, tudo isso (inclusive o alto lucro) decorre de um problema ainda mais grave, que já se localiza no debate nacional desde o início deste novo governo: a urgente necessidade de redução da taxa básica de juros do país, atualmente em alarmantes 13,75%, o que afasta investimentos e endivida as famílias brasileiras. Para que o país retome seu crescimento e as famílias possam respirar financeiramente, é evidente que o Brasil precisa abandonar a taxa mais alta do planeta.

Como podemos ver, os dados apenas reafirmam a importância dos bancos públicos no tensionamento do mercado para a garantia de direitos sociais após tantos anos de crise. Neste caso, juros mais baixos significam maior acesso ao crédito (empréstimo) para milhões de pessoas. Consequentemente, é também oportunidade de empreendimentos, investimentos, mais consumo e pagamentos regulares em um país onde cerca de 80% das famílias já se encontram endividadas. Por isso mesmo, a medida precisa estar acompanhada de iniciativas de facilitação de pagamento de débitos e de desendividamento da população, como o Programa Desenrola, também proposto pelo PDT e já anunciado pelo Ministério da Fazenda, que deve beneficiar pelo menos 37 milhões de brasileiros endividados.

Nos resta somar forças para que os esforços do governo sejam aqueles de quem acredita na potência dos trabalhadores brasileiros, iniciativas que podem e devem apontar melhorias com vistas à qualidade de vida, à justiça social e, fundamentalmente, à transformação da vida de quem mais precisa.

Sugestão de leitura:

DOWBOR, Ladislau. Democracia econômica: alternativas de gestão social. Petrópolis: Vozes, 2012. Link para adquirir: https://amzn.to/3TmNKKp

TAVARES, Maria da Conceição. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis: Vozes, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/3JMFeku

VAROUFAKIS, Yanis. Conversando sobre economia com a minha filha. São Paulo: Planeta, 2015. Link para adquirir: https://amzn.to/3JuvU3m

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Defender a ciência e enfrentar suas contradições

É evidente que, diante do negacionismo em plena pandemia, das fake news em tempos de pós-verdade, todos nos dedicamos à luta em defesa da ciência. Um posicionamento mais que justo, por assim dizer, mas que esconde algumas contradições.

Olhando para os dias de hoje, não parece, mas os últimos séculos foram tempos de grandes transformações sociais. As Revoluções Científica e Industrial modificaram radicalmente o modo como a sociedade ocidental se estruturava e se organizava – no tempo, no espaço e na vida.

Descobrimos que a água não formava, junto à terra, o fogo e o ar, os quatro elementos fundamentais do planeta; mas que ela é composta por dois átomos de hidrogênio ligados a um átomo de oxigênio. Os dias deixaram de ser popularmente medidos pelas fases do sol, da lua e das estações do ano, dando lugar uma minuciosa divisão em horas trabalhadas, medindo fundamentalmente a quantidade de bens produzidos. As pessoas abandonaram a pacata e dura vida de lavoura no interior e ocuparam as grandes cidades em busca de algum trabalho remunerado, sob as condições mais degradantes, diante das maravilhas tecnológicas das fábricas que ali surgiam.

A sociedade agora se dividia em duas classes fundamentais, trabalhadores e detentores dos meios de produção, tomando para si os valores de compra em detrimento dos valores sensíveis, superestimando o ter perante o ser. Essas foram algumas das transformações a que o mundo fora apresentado e, agora, precisava lidar com suas trágicas consequências, como a profunda desigualdade, a superexploração da força de trabalho de homens, mulheres e crianças, a pobreza extrema, os males à saúde e a baixa expectativa de vida geral, a alta densidade demográfica dos centros urbanos e todos os demais problemas decorrentes deste novo e impositivo estilo de vida. Aquilo que começara na Europa, logo foi exportado para as periferias do mundo, atropelando suas especificidades e agravando suas desigualdades e exclusões.

As ciências sociais – fundamentalmente, a sociologia, a antropologia e a ciência política – surgem justamente neste cenário, tensionadas pelos métodos das ciências naturais e sob a nada simples responsabilidade de examinar e apontar caminhos para a solução dos problemas sociais que se multiplicavam a cada dia, perante o nascimento daquilo que hoje conhecemos como capitalismo. Elas nascem fortemente influenciadas pela teoria filosófica e científica do positivismo, quase dois séculos depois do surgimento do pensamento cartesiano, porém, mais de dois séculos antes de 2023.

Foi para adentrar ao mundo da ciência mesma, este das ditas ciências naturais, calcadas na metafísica aristotélica, tomadas por conceitos e valores que ainda habitam nosso imaginário na forma de jalecos brancos, cálculos matemáticos e experimentos químicos, que podemos compreender a resistência das ciências humanas e sociais – e, fundamentalmente, da ciência política – em romper com determinados parâmetros tradicionais da lógica, isto é, do racionalismo cartesiano.

Ainda no século XVII, ao separar a relatividade cultural, histórica e temporal da subjetividade dos sujeitos e reinventar a verdade por meio da razão, René Descartes impôs a exclusão do sonho e da loucura como regra para o pleno exercício da razão e, consequentemente, para a compreensão do que tomamos como verdade. Por isso, o psicanalista Christian Dunker identifica como marco fundamental da modernidade justamente a de-limitação por Descartes do que conceituamos como razão, com base na evidência material e na certeza psicológica; e subjetividade, “uma substância que pensa algo, mas não age conforme o que pensa”.

Quase 400 anos depois do pensamento cartesiano, a pós-modernidade ganha força na academia e em demais espaços na sociedade, recuperando certa politização entre as ciências humanas. Os estudos de gênero, os estudos culturais, as teorias pós-coloniais, o pós-marxismo e o pós-estruturalismo e a psicanálise de inspiração crítica ganham evidência e impõem uma maior reflexão sobre como nossas relações e nossos pequenos hábitos cotidianos reproduzem e atualizam relações de poder nos mais diversos âmbitos da vida.

Para Christian Dunker, o pós-modernismo aponta caminhos para a transformação de cada uma dessas relações de poder presentes no cotidiano, “um caminho real e acessível para que inventemos outros mundos e para que nos sintamos parte da diferença”, isto é, para que a diferença não seja mais social, cultural e historicamente imposta, jamais coercitiva, mas conformada por uma diferença construída.

Não por acaso, ainda hoje, não calculamos os prejuízos dos confrontos de juízo de valor entre métodos quantitativos e métodos qualitativos, apesar de todas as interações possíveis que podem proporcionar entre si, principalmente no âmbito das políticas públicas. Essa força que se impõe à relação entre ciências ditas exatas e humanas – como se os nomes apagassem a origem humana comum enquanto destacam quem detém os melhores parâmetros de confiabilidade – traz consigo o peso da disputa pelo lugar de autoridade na definição das verdades universais: ontem, a igreja; hoje, a ciência; amanhã, não se sabe.

A ciência tem uma relação conflituosa com a verdade. O filósofo brasileiro Clóvis de Barros Filho, famoso por seu trabalho de divulgação científica, costuma dizer que a ciência é um esforço para encontrar defeitos na ciência anterior. Para ele, “a ciência não é feita de verdade, a ciência é feita de falseabilidade, o cientista é aquele que trabalha para apontar o dedo e denunciar o erro do anterior”. Falseabilidade aqui significa refutabilidade, a condição de uma ideia, teoria ou hipótese de ser provada como falsa. O confronto entre ciência e verdade reaviva a disputa entre a concepção de mundo de Heráclito (540 a.C.), que toma a não estabilidade, o movimento e a transformação como características fundamentais do ser; e a ideia predominante de Parmênides (530 a.C.), que defendia a essência imutável do ser.

De alguma forma, a busca pelo lugar da verdade universal se encontra justamente no mundo fantástico, no campo do desejo de dominação e controle, no âmbito das próprias subjetividades. Não por acaso, cresce o resgate do método dialético que, por meio do diálogo, sugere a contradição e contraposição como caminho para conceber novos modos de existência, mundos, ideias e realidades. Com sorte, o abandono do poder decorrente das nossas certezas e verdades pode ser o principal desafio do nosso tempo.

Sugestão de leitura:

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Link para adquirir: https://amzn.to/3Jli3xt

DESCARTES, René. Discurso do método e ensaios. São Paulo: Editora Unesp, 2018. Link para adquirir: https://amzn.to/3mx6n1P

DUNKER, Christian. Subjetividade em tempos de pós-verdade. In: _______ et all. Ética e Pós-Verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017. Link para adquirir: https://amzn.to/3SXJ1yv

RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/41PKFGu

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

A política não é apenas lógica e a razão por que não

Há uma dimensão da vida que a política – e a ciência política – ainda resiste a abordar, mesmo que seja evidente a urgência da sua inclusão e investigação. Afinal, como compreender os fenômenos das fake news, do negacionismo, do bolsonarismo e dos fascismos, da normalização da intolerância, do ódio e da barbárie, ou mesmo entender a ordenação de forças que culminaram nas recentes investidas de golpe contra a democracia no Brasil, sem considerar a conformação de emoções, crenças, consciências e realidades outras, fundadas em princípios que não se encontram plenamente sob o estatuto da verdade e os princípios da racionalidade?

Perante tamanho esgarçamento das relações políticas e sociais no Brasil, pode alguém explicar tudo o que aconteceu por aqui apenas com um pensamento lógico, sem decair ele mesmo em uma perspectiva de relativismo ou de teoria da conspiração?

No início do ano, tive a oportunidade de visitar a Feira Literária de Paraty e conferir uma roda de conversa da FLIPEI intitulada “Sonhos de uma outra terra indígena”. No debate, o neurocientista Sidarta Ribeiro reforçou a necessidade de nos dedicarmos a estudar os sonhos e outras conformações de realidade que estão fora da concepção cartesiana da verdade. Ouvi-lo me remeteu a uma ideia muito presente na militância política há alguns anos, a perspectiva indígena zapatista de luta “por um mundo onde caibam muitos mundos”.

Por coincidência (ou encanto), esse encontro resgatou e ampliou algumas reflexões que já haviam cruzado meu caminho nos anos anteriores, como alguns textos de Luiz Antonio Simas e de Christian Dunker; e, mais recentemente, quase que de maneira contínua, algumas contribuições de Darcy Ribeiro, Elizabeth Gilbert, Jean-Paul Sartre e Murilo Gun. De alguma maneira, todos eles me proporcionaram tropeços, essas trombadas involuntárias que desnorteiam o corpo entre o chão e o espaço, decorrentes de suas intervenções e obras.

Mas o que um neurocientista, um historiador, um psicanalista, um cientista social, uma romancista, um filósofo e um ex-comediante palestrante poderiam ter em comum? De modo peculiar e diverso, conforme suas respectivas áreas de atuação, suas intervenções atravessam, reforçam e aprofundam reflexões sobre dimensões mágicas do mundo.

Algumas experiências simples demonstram, na prática, os limites que estão  postos à maioria das análises difundidas por aí. Em seu Esboço para uma teoria das emoções, Sartre justifica com exemplos sua investigação. Imagine que você está lendo esse texto em sua casa, quando repentinamente um rosto desfigurado, colado ao vidro, surge em sua janela. Mesmo ciente da barreira física que é a janela, da barreira espacial que é a distância que existe entre vocês ou mesmo sem saber ao certo de quem se trata, o horror tem essa capacidade de anular a razão e lhe criar um mundo mágico, onde a ameaça passa a ser sua principal característica. Tal como num sonho ou na loucura, onde as barreiras físicas e espaciais podem parecer não resistir às ameaças do algoz, perante a nossa incapacidade de lidar com o objeto que nos gera a emoção do horror, a consciência desfaz o mundo ordenado e impõe um mundo mágico, que também pode aparecer transformado “sem intermediário e por grandes massas”. Em resumo, segundo Sartre, nossa consciência pode operar de duas maneiras diferentes, isto é, sob o regime da razão e do encantamento.

De modo semelhante, mas em oposição ao horror, o historiador Luiz Antonio Simas defende que nós, enquanto povo, não criamos modos de vivenciar a alegria porque a vida é boa, mas justamente para afastar os perrengues vividos. Não por acaso, sempre relembra Beto Sem-Braço, ao repetir que “o que afasta miséria é festa”. Em suas obras, Simas aborda as culturas de fresta que, “pelas síncopes da festa, inventam o mundo e subvertem a miséria, inclusive a existencial”. Esse é um sentido fundamental para a compreensão do carnaval, por exemplo. Cada um a seu modo, Sartre e Simas defendem que o próprio sujeito se determina, ele se inventa enquanto atua no mundo e, assim, recria seus mundos também.

Hoje, tendo a crer que a pergunta necessária é anterior àquelas que fiz, baseada não no mero apontamento do outro, mas na crítica tanto à ciência política quanto a nossa prática de cada dia. Por que a (ciência) política insiste na hegemonia da razão cartesiana se é, ela mesma, causa e resultado de importantes tensionamentos com a razão cientificista? Os parâmetros da lógica não dão conta das especificidades vividas na realidade concreta das coisas. Mas, com sorte, a essa altura, já é carnaval.

Sugestão de leitura:

SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/3IxTdKE

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, LUIZ. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020. Link para adquirir: https://amzn.to/3lK2eHu

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/40ZX8aa

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Diálogo sobre o ódio

Pensei em escrever esse texto há tempos. Porém, confesso que as vezes me parecia inútil falar sobre escuta, diálogo e empatia diante do caos que tomou a política e a vida na segunda e terceira década do século XXI.

O avanço da extrema direita no mundo, a queda de uma presidente eleita no Brasil sem qualquer crime cometido, a ascensão do negacionismo e do ódio na política brasileira e uma pandemia sem precedentes que tirou a vida de mais de 6 milhões de pessoas por todo o mundo – três dessas pessoas eram familiares que moravam comigo. Nesta conjuntura (ou talvez em qualquer outra), é simplesmente impossível conversar com um indivíduo afeito a teorias da conspiração que escarnece das perdas de tantas famílias, um negacionista antivacina que duvida do papel da ciência no combate à doença, um militante de extrema direita que utiliza uma das maiores tragédias da história da humanidade para ressuscitar os tempos de Guerra Fria ou mesmo um terraplanista e seu planeta que flutua feito um frisbee pelo universo. Não, isso seria pedir demais da sua e da minha paciência.

A política nunca foi um ambiente fácil, é verdade. Só na primeira metade do século XX, o mundo foi atravessado pela pandemia de Gripe Espanhola que vitimou cerca de 17 milhões de pessoas por todo o planeta, duas Grandes Guerras que deram cabo de mais de 100 milhões de vidas, fora a Grande Depressão e outras crises. Na outra metade, tivemos a Guerra Fria – que não deu refresco algum pra quem vivia nas periferias do planeta -, a Guerra do Vietnã, as ditaduras civis-militares na América Latina, as lutas por independência dos povos ainda submetidos ao subjugo colonial e outros tantos confrontos.

Nas duas últimas décadas do século passado, tudo parecia caminhar para um novo mundo. O dito terceiro-mundo enfim conquistava sua autodeterminação, Mandela era solto e o apartheid chegava ao fim na África do Sul, as últimas ditaduras latino-americanas ruíam perante o anseio popular por democracia, o Muro de Berlim caia e representava o fim da Guerra Fria. Naquele tempo, Marty McFly andava sobre skates voadores, Michael Jackson cantava os ensinamentos de Mahatma Gandhi (“seja você a mudança que quer ver no mundo”), Ferris Bueller matava aula para protagonizar um novo modo de encarar a vida, Will Smith tomava um táxi com Quincy Jones da Filadélfia para Bel-Air, enquanto o Scorpions assobiava em Gorky Park os ventos da mudança qual Oyá.

Os conflitos entre as gerações nascidas no século XX, desde os baby boomers e passando pelas gerações X, Y (ou millenials) e Z, promoveram rupturas radicais e exigiram difíceis adaptações na educação, nas relações de  trabalho, nas expectativas sobre o futuro, nos valores e nas maneiras de ver o mundo. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, todas essas transformações entre as gerações sempre tiveram certo caráter traumático, deixando algumas pessoas pelo caminho, rejeitadas frente às novas demandas do tempo. Entretanto, de um modo geral, as gerações anteriores trabalharam duramente e investiram em seus filhos certos de que, no futuro, a nova geração familiar superaria seus feitos, uma tendência mundial que se manteve por determinado tempo. Sob a crença irrefutável num futuro de vasta sabedoria educacional, melhorias pessoais, avanços econômicos e desenvolvimento humano, muitas famílias investiram pesado na educação de seus filhos, recorrendo ao crédito e a dívidas astronômicas, certas de que a educação superior garantiria a continuidade da mobilidade social de seus descendentes.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ainda segundo Bauman, diante da realidade promissora da “reprodução intergeracional do sucesso”, nossos pais e avós semearam a esperança e uma série de expectativas sobre as gerações posteriores, certos de que seus filhos e netos teriam muito mais escolhas e possibilidades, superariam suas conquistas e voariam muito mais alto do que eles almejariam conseguir. Todavia, parece que o relógio toca suas doze badaladas e anuncia a chegada da meia noite, quando a carruagem dourada de um futuro próspero retoma sua forma original de abóbora. Após a primeira década do século XXI, nós compomos a primeira geração do pós-guerra a defrontar uma “expectativa de mobilidade descendente”. Hoje, a certeza está no futuro incerto dos empregos temporários e dos subempregos; dos falsos estágios que visam baratear ainda mais a contratação nos mesmos subempregos; dos microempreendedores individuais que enfrentam as exigências de um subemprego, mas tem negado seus direitos trabalhistas; dos bicos e freelas que mal dão conta da subsistência; dos serviços digitais de transporte e entrega por aplicativos, que impõem regras do século XVIII aos seus funcionários enquanto os chama de colaboradores. Tudo se torna transitório, exceto a crescente lista de desempregados, as péssimas condições de trabalho geral e essas verdadeiras “multidões de frustrados” que carregam consigo o peso da expectativa de gerações inteiras.

Tudo parecia perfeito, mas, aparentemente, miramos na bonança que chega após a tempestade e acertamos no silêncio que precede o caos. Após o período de grandes mudanças, as coisas começaram a degringolar rapidamente – e há um sentido nisso, sobre o qual poderemos falar em breve. A insatisfação e a (negação do sentimento de) culpa vestiram as roupas da indignação, da intolerância e do ódio.

Sugestão de leitura:

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: convesas com Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Link para adquirir: https://amzn.to/3XfW6ns

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/3jEGrAm

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. Link para adquirir: https://amzn.to/3JVjh3g

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

 

Histórias de Seu Cantuária

Na última semana, perdi um tio. Foi o sexto tio que faleceu em apenas dois anos. Depois de tantas perdas em um período tão curto e difícil para a vida, a gente aprende que a morte não traz apenas a dor e o luto, mas também muita burocracia. Foi vasculhando alguns papéis antigos da família que encontrei os documentos do Seu Cantuária.

Ao conferir os documentos, vi que Thomaz Cantuária nasceu em 29 de dezembro de 1909 na cidade de Cachoeira, terra de Caramuru, às margens do Rio Paraguaçu, na Bahia. Porém, há uma outra história que os papéis não contam, uma história que eu conheço e mal entendo como. Essa história é sabida a conta-gotas nas reuniões em família, nos ‘causos’ de minha avó Dedé, nas conversas com minhas tias e nas histórias de mãe. Surgem nos momentos mais despretensiosos, quando a memória se apresenta, afetuosamente trazida por algum pequeno evento do cotidiano, acompanhada dos saberes dos mais velhos. Essas lembranças vêm como quem acorda de um sono profundo com a leveza de quem regozija o descanso e logo se livra das cobertas, levanta com um sorriso no rosto, sai do quarto e elogia o cheiro de café que toma a casa inteira tal qual se diz bom dia. Mas, apesar do aroma, isso não faz da memória um comercial de margarina. Eu não conheci o Seu Cantuária, mas sinto que a nossa história, a história da minha família, é assim, feita em palavra contada, e é assim que conto essa história.

Thomaz nasceu em 1910. Ficou órfão de mãe muito cedo e logo seu pai também adoeceu. Diante da incerteza do destino, seu pai tomou a decisão que definiria o destino do menino de apenas doze anos: o entregou aos cuidados da Marinha do Brasil e o fez aprendiz-marinheiro. À época, a Marinha operava como uma espécie de abrigo para menores de idade, um lugar para “corrigir” os jovens ditos “problemáticos”, um centro de medidas socioeducativas que recolhia crianças e adolescentes, em sua maioria negros, pobres, muitas vezes órfãos – e Thomaz acumularia em breve as três categorias da exclusão.

Um mês antes de seu nascimento, a capital do Brasil estava sob a mira dos canhões dos novíssimos couraçados Minas Geraes e São Paulo, além de outros navios cruzadores. Liderada por João Cândido, o Almirante Negro, a rebelião agia contra os castigos corporais empregados por oficiais navais brancos para punir marinheiros negros na Marinha do Brasil. O evento ficou conhecido como A Revolta da Chibata. Pouco mais de 10 anos depois, as coisas não teriam mudado tanto na instituição.

Thomaz não queria ir. Aos doze anos, ele havia perdido a mãe recentemente, lidava com o adoecimento do pai e, agora, estava fadado ao completo afastamento da família. Ele sequer possuía a idade mínima estabelecida pelo regulamento da instituição. Na época, era comum que crianças fossem aceitas se cumprissem certos parâmetros de tamanho e força, independente da idade. Assim foi feito, com um adendo: sua data de nascimento foi alterada em um ano, mudando de 1910 para 1909. Para fins legais, Thomaz agora tinha 13 anos e era um aprendiz-marinheiro.

Seu Cantuária não falava muito dessas histórias, sobre suas origens, menos ainda sobre seus pais e sua família. Ele vivia sua carreira discretamente, não exaltava as Forças Armadas nem contava vantagem sobre sua carreira ou posto. Usava seu uniforme em raras ocasiões, apenas quando estritamente necessário. Gostava mesmo era de seu violão, de tirar chorinho de ouvido, dar suas canjas em casa com a família e, ocasionalmente, com visitantes ilustres, como Altamiro Carrilho e cia. Do mesmo modo com que o afeto por sua mãe permanecia vivaz e presente, também havia uma ferida escondida, mal cicatrizada, que lhe pesava latentemente e insistia em lembrá-lo do passado. Restava descontar suas dores nas cordas com seu choro em Mi menor, como quem nina suas memórias para que durmam profundamente e nada sinta mais. Mas não há lembrança que não precise espairecer.

Estas não foram as únicas durezas institucionais que presenciou. Nos anos 60, Seu Cantuária já seria oficial da Marinha e também trabalhava como radiotelegrafista numa antiga empresa de aviação, a Panair do Brasil. Pai de 12 filhos, ele trabalhava em turnos dobrados para fazer renda extra e conseguir pagar os estudos de seus caçulas. Foi assim que sua filha cursou o técnico em química e outro filho cursou a faculdade de matemática – este, antes de concluir a graduação, abandonou os estudos para ser lateral no América. Isso deixou Seu Cantuária muito irritado, mas não é essa a história que devo contar.

A Panair é lembrada com certo romantismo por se tratar de uma das empresas pioneiras da aviação nacional e por ser a representação da adesão brasileira à modernidade. Todavia, também é reconhecida por protagonizar um caso inédito da justiça brasileira: o único caso de decreto compulsório de falência, isto é, sem pedido do credor. Após o golpe civil-militar de 1964, a empresa foi fechada da noite para o dia. Hoje sabemos que seus proprietários foram perseguidos politicamente durante a ditadura, que a falência da empresa foi decretada mesmo sem motivos para isso e que seus concorrentes foram diretamente favorecidos pelo regime.

Eram tempos difíceis. Em teoria, a repressão se dava contra os “subversivos”, aqueles que criticavam ou lutavam contra a ditadura. Deste modo, a brutalidade do Estado tinha como objetivo a manutenção do poder nas mãos dos militares, sem que houvesse questionamentos ou riscos. Para o governo, a oposição aos interesses e valores do regime não podiam ter lugar. Mas, na prática, a perseguição era muito mais ampla, pois também decorria dos contatos e das relações que você construía: bastava conhecer a pessoa certa para a ocasião que lhe fosse conveniente. Uma disputa pessoal, um aborrecimento, ciúmes ou uma discussão qualquer, não importa. Se uma pessoa fosse denunciada às forças do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ela era implacavelmente perseguida e passava pelos métodos mais degradantes e violentos para averiguação. Muitas pessoas foram denunciadas, perseguidas, torturadas e mortas por desagradar ou para beneficiar alguém, ao regime ou aos amigos do regime. Algumas pessoas nunca mais foram encontradas. As consequências foram brutais.

Nada disso se dava de modo evidente. Pouco foi noticiado nos jornais ou na televisão, pois havia censura e a mídia que restava só poderia apoiar o regime. Nas periferias, nos lugares esquecidos ainda hoje, a violência era e continua sendo ainda mais grave – na Baixada Fluminense, uma pessoa desapareceu a cada seis horas só em 2022. Não por acaso, todos nós, dos mais velhos aos mais novos, herdamos certo temor quanto ao falar sobre o que e quem nos aflige. Apesar do tempo, todos sabemos muito bem como uma denúncia pública pode desagradar a pessoa errada e acarretar em perseguição política ou em algo pior.

Agora, esse medo é propagado novamente na voz e na ação de muita gente que não compreende os riscos que a rispidez, o preconceito, a intolerância e o ódio podem impor a um país. A nossa indignação com uma realidade tão violenta não pode nos tornar espelho do que há de pior, mas sim em exemplo de superação ante todos. Não é possível construir um mundo mais respeitoso, empático e justo tomando a violência como caminho. A democracia é a proteção contra o autoritarismo, assim como a justiça é o remédio contra a barbárie. Por isso, a solução está justamente na coerência entre o que desejamos, dizemos e praticamos.

Há uma música famosa de Marcelo Yuka que diz que “paz sem voz não é paz, é medo“. Eu acredito muito nisso. O silêncio apartado da escuta de si e do outro é um forte sinal de violência. Se queremos um mundo melhor, precisamos ser melhores por inteiro também.

Ao se deparar com essas situações, as orientações de Seu Cantuária eram claras: “Arrume toda a família e saia de madrugada. Sem que pareça uma viagem e sem que ninguém os veja, leve apenas aquilo que possa carregar nas mãos”. Não se sabe ao certo quantas pessoas ele alertara. Pessoas que, por algum revés da vida, foram denunciadas e poderiam ter sido levadas para as câmaras de tortura da ditadura militar. Dos antigos vizinhos que ainda resistem à memória, minha família nunca mais soube, nunca mais foram vistos. Hoje, eles habitam na esperança de que o sumiço signifique a sobrevivência, mas há um medo velado que permanece e silencia o assunto desde então. Medo de que as pessoas erradas saibam da ajuda, medo do julgamento perante os apoiadores do regime. A ditadura passou, algumas pessoas seguiram tranquilas, mas seu silêncio se enquartela entre nós.

Antes dos anos de chumbo, lá pelo fim dos anos 40, Seu Cantuária veio do nordeste com a família e se instalou em Nilópolis, próximo ao final da Av. Mirandela. Naquele tempo, a Mirandela era uma estrada de barro onde as boiadas cruzavam cotidianamente em direção ao antigo matadouro. Todos os dias, centenas de trabalhadores também se deslocavam até o centro de Nilópolis para tomar a condução com destino ao Rio de Janeiro, capital do país. Quando chovia, tudo virava um grande lamaçal, o que tornava chegar ao ponto de ônibus ou à estação de trem sem se enlamear uma missão quase impossível. Os poucos ônibus que já serviam ao bairro não só atrasavam como passavam imundos de barro, tanto por dentro quanto por fora, o que causava grande sentimento de revolta nos moradores, principalmente durante o período de chuva.

Certa vez, em mais uma viagem de ônibus pela lama, houve um grande burburinho entre os passageiros. Indignado por nada ser feito, Seu Cantuária sugeriu que todos os vizinhos boicotassem a empresa até que a limpeza dos ônibus fosse feita. O discurso conquistou seus colegas de condução, que logo aderiram à medida proposta. No outro dia, empenhado em sua manifestação, Seu Cantuária guardou a farda na bolsa e vestiu uma roupa simples para a caminhada. Calçou suas humildes sandálias e as cobriu com sacos plásticos amarrados nas canelas para assim enfrentar o lamaçal até o centro de Nilópolis. Mesmo diante de um dilúvio, ele não daria um único centavo para o ônibus até que a empresa garantisse um serviço digno para os passageiros. Ao sair pela porta de casa e tomar o caminho do brejo, o ônibus cruza seu caminho, lotado de vizinhos com sorrisos amarelos e explicações embaraçadas.

É curioso pensar como essas histórias dizem tanto sobre minhas experiências no mundo – na família, na arte, na política e até no transporte público. Meu avô nasceu na Bahia, mas viveu até seus últimos dias em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Eu não tive a oportunidade de conhecê-lo, mas tive a sorte de saber algumas de suas histórias. Assim, compreendo um pouco mais sobre a minha também. E, pelo cheiro que sinto aqui do quarto, o café está delicioso.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Missão cumprida: a Casa Dulce Seixas agora tem CNPJ

Na primeira vez que visitei a Casa Dulce Seixas, eu estava tão encantado com a iniciativa que não preparei meu espírito para as histórias de vida que ouvi. Algumas histórias pertenciam a um passado distante, cujas dores haviam se tornado latentes; mas outras histórias estavam ali, vivas e vividas há poucas horas daquele encontro. Foi assim que conheci a história da amiga Shirley Berssey, coordenadora da casa, e a história de cada uma das pessoas acolhidas ali. Foi quando entendi como aquela casa de axé abrigou gente de todos os cantos que, na pandemia, se viu sem lugar no mundo. Shirley decidiu repartir tudo com quem nunca teve o direito de ter a si mesmo e ofereceu ajuda a quem precisava se encontrar.

Nova Iguaçu, 21 de maio de 2022. Conhecendo a Shirley, os acolhidos e a Casa Dulce Seixas.

Perante tanta dificuldade e incerteza, naquele mesmo dia, a gente conversou e concordou que buscar a autonomia da Casa seria o melhor plano. O CNPJ era fundamental para que a Casa não dependesse apenas das ajudas individuais ou de negociações políticas e eleitorais. Falei então com o Gabriel Bruno, que ainda construía minha candidatura e depois passou a trabalhar com o deputado federal David Miranda, também do PDT. A gente sabia que o David tinha um longo histórico de apoio à causa LGBTQIANP+ e que seu mandato toparia ajudar. Graças à articulação e à união de forças, deu tudo certo!

A gente não ganhou a eleição, mas, hoje, o único local de acolhimento para pessoas LGBTQIANP+ da Baixada Fluminense conseguiu, enfim, seu tão sonhado CNPJ. Isso será fundamental para possibilitar a captação de recursos, dar autonomia e fortalecer não só a Casa Dulce Seixas, mas a justiça social na BXD também. Uma porta foi aberta, afinal.

Fico emocionado ao escrever esse texto, pois agora me encaro no espelho e compreendo com clareza as razões pelo sufoco que a gente passou e o perrengue com que ainda lido. Aprendi nessa eleição como quem bebe um vinho muito amargo que reserva um retrogosto doce feito mel – e todo mundo sabe o quanto eu adoro doce, mas detesto amargura. David Miranda, Adriano, Danilo, Davlyn, Gabriel, Gustavo, Luz, Polly, Tamires e todo mundo que contribuiu nessa empreitada, essa conquista é de vocês também. Obrigado por terem topado essa loucura toda. Missão cumprida, né?

É verdade, a gente não ganhou a eleição de 2022, nem perto disso. Pelo contrário, o resultado eleitoral ficou muito aquém diante do tanto que a gente ralou por um bom resultado. Mas, tal como em 2020, antes mesmo de começar, muita coisa deu errado e muito do que fora planejado simplesmente ruiu. Parcerias não se concretizaram, promessas não foram cumpridas, problemas gravíssimos de saúde prejudicaram parceiros, obstáculos inesperados foram postos no caminho e o fogo amigo colocou a cereja no bolo. Mas, então, por que não desisti?

Nova Iguaçu, 26 de julho de 2022. Apresentando a Casa Dulce Seixas para o deputado federal David Miranda.

Eu não acredito que as eleições mudam as coisas. Eu acredito que a gente muda as coisas. Eleições são como chaves que abrem as portas para o diálogo, para o território e para o mundo que a gente quer. É possível que não nos deixem entrar nunca, mas a gente pode abrir uma janela para que alguém consiga pular e caminhar por lá. Por isso, se a gente pudesse potencializar as forças da BXD e das periferias do Rio, se a gente conseguisse ajudar pelo menos um de nós a avançar, todo o sacrifício valeria a pena. Por isso que eu decidi abrir mão, sim, mas decidi abrir mão de outras coisas. Abri mão do meu emprego, da minha parca segurança financeira e das minhas realizações profissionais, montei uma equipe potente, dobrei as tarefas, virei noites sem dormir e perdi alguns cabelos pelo caminho. Todo mundo que colou junto fez muitos sacrifícios também. 

Já desisti de muita coisa na vida. Apesar de muito competitivo, eu não tenho o menor pudor de assumir minhas derrotas. Porém, desistir ali seria injusto comigo e com quem topou a missão de fazer política na BXD coletivamente, seria injusto demais com toda a trajetória que a gente construiu junto e misturado. Com o tempo, a gente aprende que nem sempre há tempo para rascunho. Aqui a gente sempre atua nas frestas da vida, hackeando o sistema e aproveitando os espaços que se apresentam, sem soltar a mão de ninguém. Junto, a gente decidiu que não poderia abrir mão dessa oportunidade.

Durante as eleições de 2010, a então futura presidenta Dilma Rousseff disse em uma entrevista coletiva que não importava se quem vai ganhar ou quem vai perder vai ganhar ou perder, pois todo mundo iria perder de alguma maneira. Já em 2014, a então candidata Marina Silva diria que não queria nada a qualquer custo, pois preferia perder ganhando a ganhar perdendo. Parece confuso, mas, depois de três eleições, eu não poderia concordar mais com elas. Tal qual Darcy Ribeiro, hoje eu sei que posso ter fracassado em muita coisa que tentei na vida, mas os fracassos também são minhas vitórias. E eu tenho certeza que, assim como ele, eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

A Baixada da gente é a gente quem faz todo dia. E eu boto muita fé nas nossas potências!

Nova Iguaçu, 20 de janeiro de 2023. Comemorando com a vizinhança a formalização da Casa Dulce Seixas. Agora a Casa tem CNPJ!

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Leitura: A América Latina existe?

Tenho conversado muito com Darcy. Na verdade, me impressiona seu caráter futurista, a frente não só do seu, mas do nosso tempo também. Talvez eu venha compensando minha abstemia e ausências no Bar do Binho com suas leituras. Leio Darcy como se conversássemos na mesa de um boteco e isso é ótimo.

Minha primeira leitura concluída em 2023 foi desse livreto aqui: A América Latina existe?, de Darcy Ribeiro. A obra compõe uma coleção de dez pequenos livros chamada Darcy no bolso. Com pouco mais de 100 páginas cada, nos quais seus pensamentos e relatos foram organizados como um diário.

No decorrer do ano, eu provavelmente compartilharei mais sobre ele com vocês. Quem sabe um mini-curso? Não sei, vamos ver se ele topa.

É evidente que há certa anacronia em meus julgamentos quando me deparo com alguns de seus relatos e hábitos que compartilha debochadamente, qual um homem vivido em meados do século XX com seu copo de cerveja na mão (imagino eu). Entretanto, sua abordagem de pautas que, ainda hoje, são tabus em setores das esquerdas ou mesmo do trabalhismo são surpreendentes.

Na obra, Darcy explica como o racismo e a violência destituíram os povos de suas identidades e culturas, tudo sob o interesse das classes dominantes – antes, pelo colonialismo escravocrata europeu; depois, pela exploração das corporações capitalistas. A compreensão do racismo é central para entender o Brasil e a América Latina.

Diante disso, Darcy acredita que, no futuro, os latino-americanos construam uma “entidade política supranacional” para que possam determinar suas próprias vidas e caminhos, com destaque para as nacionalidades indígenas ainda tão oprimidas. Para Darcy, a nacionalidade como conhecemos só faz sentido para aqueles que detêm algum nível de equidade, o que é inviável perante o racismo brutal que permanece.

Ideias como mecanismos políticos de auto-organização, participação e controle popular, meios de construção coletiva de outras realidades e de garantir boa vida ou mesmo a possibilidade de instituirmos estados plurinacionais frente ao capitalismo dependente das classes dominantes de toda a América Latina ainda são vistas com ressalvas pela maioria das esquerdas. Porém, elas habitavam encantadas na mente deste centenário senhor.

E, por falar em encantaria, ao denunciar a tentativa de doutrinação cristã sobre os povos da floresta e seu genocídio no Brasil, Darcy denuncia tais “infiéis” que corroboram com a invasão e destruição de terras indígenas. Atual, né?

Darcy defendeu um Povo Latino-Americano que um dia há de sarar as feridas abertas de seu passado para jamais repeti-los, um povo que há de valorizar suas potências enquanto herdeiro das sabedorias dos povos da floresta, do páramo, de África e dos mares do sul.

Debaixo do sol, o ar escaldante derretia ao encontrar a garrafa estupidamente gelada que suava sobre a mesa como quem peleja pelo Brasil que pode ser e há de ser. O líquido dourado cintilava sob o alvo colarinho que escorria sedutoramente pelo copo americano que, não por coincidência, é brasileiro. Brindamos.

Sugestão de leitura:

RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Coleção Darcy no bolso, vol. 1. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB, 2010. Link para adquirir: https://amzn.to/3IYiJJi

________________. O Brasil como problema. Coleção Darcy no bolso, vol. 2. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB, 2010. Link para adquirir: https://amzn.to/3IVbIJh

________________. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2014. Link para adquirir: https://amzn.to/3Xpkow0

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

 

Quando conheci Mahatma Gandhi e Dr. King

Me lembro como se fosse hoje. Quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, ainda em Macaé, passei a ter minhas primeiras crises de enxaqueca. Fui ao médico, mas minha saúde estava perfeita, nada além de certa intolerância a corantes e conservantes. Como eu era muito tímido, orientada pelo médico, minha mãe me levou a uma psicóloga. Lembro que ela era muito carinhosa e me fez perguntas típicas que fazemos às crianças, como o que eu queria ser quando crescer, se eu gostava de desenhar e o que eu gostava de fazer.

Muito fã do Ayrton Senna, eu queria ser piloto de Fórmula 1. Também disse que preferia pintar a desenhar, pois me achava péssimo com desenhos – o que depois descobri que era só falta de prática. Mas eu gostava mesmo era de jogar bola, fazer guerra de mamona e brincar de pique no quintal de casa.

A psicóloga então me perguntou: se você encontrasse uma lâmpada mágica e o gênio da lâmpada lhe oferecesse o direito a 3 desejos, o que você pediria? Eu respondi que queria que todas as crianças também tivessem brinquedos; que o conflito no Peru acabasse (Governo Fujimori, né?); e que houvesse paz no mundo. Acabei constrangido com a reação dela, ao me questionar se eu não gostaria de nada pra mim. É evidente que eu queria uma baita coleção de Lego, uma camisa do Flamengo e uma bola nova, mas achava as outras coisas prioridades diante de um poder tão grande. Ela não pôde deixar de concordar, mas ainda me pego pensando no porque disse isso.

Macaé era uma cidade de pescadores e petroleiros, como se pode imaginar, detentora de uma desigualdade absurda. Meus vizinhos eram ou muito ricos ou muito pobres. Eu, filho de uma trabalhadora petroleira, técnica em química, não entendia por qual razão eu morava numa casa antiga e humilde ao pé do Morro do Carvão, enquanto alguns amigos viviam em barracos de madeira e sem banheiro no alto do morro ou na beira da linha do trem e outros habitavam casarões na rua de baixo. Éramos do mesmo bairro e eu brincava com todos, mas eles sequer se conheciam. Os recortes raciais e de classe eram óbvios e flagrei por diversas vezes sua violência. Esse conflito me incomodava muito e formou meu modo de enxergar o mundo.

Aos 13 anos, quando deixei o interior e cheguei à Baixada Fluminense, encarei outro tipo de desigualdade. Eram desigualdades e violências naturalizadas diante de outras estruturas e de oportunidades diferentes, tudo me pareceu ainda mais brutal. Ora, se realidades tão distintas possuíam desigualdades tamanhas, então havia algo maior por trás disso tudo.

Como também se pode imaginar, cursar Ciências Sociais foi meu modo de tentar entender, explicar e contribuir frente a desigualdade e as consequências do neoliberalismo que vi em Macaé e em Nilópolis. Antes desse passo, porém, duas figuras mudaram meu modo de ver e vivenciar isso tudo. Foi ao conhecer as histórias de Mohandas Karamchand Gandhi e de Martin Luther King Jr. que compreendi a possibilidade de conciliar saberes e práticas de quem se indigna mundo afora e aqui. Eu devia compreender as experiências outras e as nossas para enfim enfrentar o problema.

Conhecer a luta anticolonial, por autodeterminação dos povos e pelos direitos humanos foram determinantes para que eu criasse em 2011 o coletivo Nilópolis Debate, uma organização de viés horizontal, fundada em práticas democráticas e na participação popular. Manter minha vida e meu ativismo na Baixada Fluminense são atos políticos dos quais, apesar do preço e das ameaças contra minha vida, não me arrependo, pois me matam e me reavivam todos os dias. Assim aprendi.

Após 73 anos da passagem de Mahatma Gandhi e 53 de Dr. King, suas práticas políticas seguem influenciando gerações inteiras na luta contra as desigualdades e por justiça social. Somos pessoas conscientes de que o mundo que queremos construir não surgirá de uma única cabeça iluminada, caridosa, distante e solitária, pois esse mundo já existe, construído pelas mãos ásperas do trabalho resiliente, diário e coletivo nas periferias de todo o planeta. São elas que têm muito a ensinar.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Covid-19 e a criminalização do Carnaval

Há 70 anos, minha família materna deixou o nordeste e se instalou em Nilópolis, ao lado da Beija-Flor. Sempre ouço suas histórias e vejo seu poder de mobilização com a comunidade. Apesar dos problemas decorrentes, a escola é o maior motivo de orgulho e identidade do nilopolitano.

Também sou neto de uma baiana e velha guarda da Beija-Flor de Nilópolis. Ainda criança, via o trabalho da Vó Geralda começar no outono e então ansiava até o dia em que enfim a veria na TV. Esse era o meu modo de conexão com minha avó paterna, sempre presente, apesar da distância.

Todo ano eu assistia o maior show da Terra varar noite e madrugada por dois dias pra depois desaparecer e recomeçar do zero. O carnaval me ensinou cedo sobre os modos de reinvenção da vida, esse saber tão próprio da periferia e de suas ancestralidades. Somos vários, nunca sós.

Quando soube do recente cancelamento do carnaval, logo me lembrei dela. O samba foi sua razão de vida e foi no samba que ela se foi. Após uma apresentação da velha guarda pelo interior de Minas Gerais, regada a muito samba e a cervejinha que tanto gostava, Dona Geralda descansou.

A vó não viu o governo anticarnaval de Crivella e a pandemia afetarem drasticamente toda a cadeia produtiva do carnaval. Também não viu o cancelamento do carnaval de rua e a ameaça que assombra os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e na Intendente Magalhães.

Muito além dos furdunços pelas zonas abastadas do Rio, há tempos os blocos de bairro, festas de rua e escolas de samba sofrem ataques. Agora, conservadores e racistas se unem aos progressistas elitizados pela total restrição da festa majoritariamente negra, pobre e periférica.

É evidentemente injusto cancelar um carnaval distante, semanas antes, enquanto festas, shows, cultos, eventos esportivos e toda sorte de aglomeração ocorrem neste momento em espaços privados, sob uma nova onda de Covid-19. Não seriam essas as ameaças que demandam restrição agora?

O novo surto foi agravado pelo réveillon e suas festas privadas, inclusive em locais fechados e sem ventilação, que continuam sem qualquer impedimento ou fiscalização. Isso só escancara a desigualdade, a elitização e a criminalização que tanto tentam impor contra as periferias.

Na contramão disso, as festas e demais expressões populares de rua são canceladas com urgência e antecedência sem precedentes: 55 dias. Logo, fica a suspeita sobre o que de fato define quem pode ou não pode curtir, se é mesmo o cuidado ou o poder econômico, o status e a grana.

Certa vez, para contrapor a influência do financiamento privado das campanhas eleitorais na política do Rio, um camarada que muito admiro disse que “quem paga a banda, escolhe a música”. Eu concordo. Hoje quem paga a banda só aceita dividir o samba com quem comprou ingresso.

E como ficarão os camelôs, os trabalhadores informais, os pequenos blocos e demais trabalhadores do carnaval pelos subúrbios e periferias? Não é possível impor a essas pessoas mais um ano sem trabalho e renda, principalmente diante da maior crise econômica da história do Rio.

Em primeiro lugar, precisamos de uma política de enfrentamento à pandemia que seja efetiva, democrática e garanta tratamento justo e igualitário para todas as pessoas, respeitando suas diferenças e especificidades. Os protocolos de cuidado devem valer para todos, sem distinção.

Os governos municipais e estadual junto à iniciativa privada ligada ao carnaval também devem compor e garantir políticas de auxílio, apoio e fomento a todos os trabalhadores que ficarão sem trabalho, renda e encantamento pelas ruas da capital, da Baixada e do Leste Metropolitano.

Tais medidas podem abrir caminho para a retomada econômica de um estado que perdeu cerca de 800 mil empregos e possui 1,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Ante os R$ 14 bilhões da venda da Cedae, é o mínimo que se pode esperar dos prefeitos e do governador Cláudio Castro.

O samba é inaugural. Quando ouve o batuque pela primeira vez, a criança estranha, mas logo se envolve e dança. Quando empunha um galho e o toca no chão, já apreende sua língua. Ao tomar o lápis entre os dedos, risca e cria.

Se só os ricos podem dançar, não é meu carnaval.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Com contribuições do jornalista William Faria.

Mãos ao alto: R$ 7 é um assalto

Em 2013, ao escrever sobre o aumento das passagens em Nilópolis, cravei que a cidade possuía o quilômetro rodado mais caro do Brasil. Desde então, sempre que acordo e descubro um novo reajuste nas tarifas, me sinto como Bill Murray em Feitiço do Tempo e revejo o velho texto.

Há quase 10 anos, na esteira das mobilizações que tomaram as ruas por todo o país, nossa mobilização colocou milhares de pessoas nas ruas de Nilópolis, forçando o então prefeito Alessandro Calazans a voltar atrás. Sim, nós barramos o aumento das passagens dos ônibus municipais.

O contexto político e econômico agora é outro. Tal como o Brasil, o estado do RJ afundou numa crise sem precedentes. Perdemos 800 mil empregos só nos últimos 5 anos e, hoje, somos 1,5 milhão de desempregados e 2 milhões em situação de pobreza, todos sem perspectiva de mudança.

O que também não muda é o impacto de um transporte caro e precário sobre a vida das pessoas. Naturalizamos o movimento pendular ao trabalhar ou estudar longe de casa e voltar ao fim do dia. Essa bola de demolição é a exploração extra de quem vive nos subúrbios e nas periferias.

De acordo com o Mapa das Desigualdades produzido pela Casa Fluminense, cerca de 42% dos moradores de Nilópolis que possuem vida profissional ativa trabalham no Rio de Janeiro. Muitos estudantes e pessoas em busca de serviços diversos também se deslocam diariamente rumo à capital.

A forma mais barata de se chegar ao Rio ainda é pelos trens da SuperVia. Entretanto, a passagem que hoje já custa R$ 5 chegará aos R$ 7 a partir de fevereiro. Em muitos casos, ainda é preciso tomar mais um ônibus ou o metrô, cuja tarifa por meio do Bilhete Único totaliza R$ 8,55.

Assim, se esse morador de Nilópolis for 5 dias por semana ao Rio, seu custo mensal é de pelo menos R$ 342, podendo chegar à marca anual de R$ 4.446. Isto é, o estudante, trabalhador e/ou empregador precisa arcar com mais de 4 salários-mínimos apenas para despesas de deslocamento.

Nilópolis, 1975 / Jornal do Brasil

E se, por acaso, esse mesmo nilopolitano ainda carecer de um ônibus municipal para chegar à estação de trem, a conta pode chegar a incríveis R$ 25,00 por dia ou R$ 500,00 por mês. São R$ 6.500,00 por ano, sem incluir alimentação e outros gastos essenciais. Dá mesmo pra se viver?

Com o aumento das tarifas, agrava-se também a dificuldade de contratação de quem mora nos subúrbios e periferias. Devido ao alto custo de seu deslocamento, as raras e já muito concorridas vagas de emprego sempre serão destinadas àqueles que demandam um menor custo ao empregador.

Por isso, não é incomum vermos trabalhadores arcarem com o valor parcial ou total de sua passagem, além dos 6% descontados de seu salário para o vale-transporte. Na atual conjuntura, muitos topam pagar para conseguir algum emprego, exemplo da brutal precarização da vida no Rio.

O transporte público, afinal, se tornou o principal custo diário dos trabalhadores nas metrópoles afora. No Rio, a ineficiência do serviço é acentuada pelas desigualdades e por seu histórico projeto de gentrificação — empregos em zonas nobres e distantes da maioria da população.

Neste cenário, fica evidente que qualquer reajuste é perverso e injusto. Para debater a questão com seriedade, é preciso democratizar o processo, com uma efetiva transparência nas contas das empresas do transporte público e ampla participação popular nas análises e nas decisões.

Mais do que isso, combater a crise no Rio é enfrentar seu projeto histórico de apartamento e apagamento do povo, dos centros para o subúrbio, Baixada e favelas. Só construiremos uma cidade mais justa, democrática e para as pessoas por meio de uma efetiva e popular Reforma Urbana.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.