Quando conheci Mahatma Gandhi e Dr. King

Me lembro como se fosse hoje. Quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, ainda em Macaé, passei a ter minhas primeiras crises de enxaqueca. Fui ao médico, mas minha saúde estava perfeita, nada além de certa intolerância a corantes e conservantes. Como eu era muito tímido, orientada pelo médico, minha mãe me levou a uma psicóloga. Lembro que ela era muito carinhosa e me fez perguntas típicas que fazemos às crianças, como o que eu queria ser quando crescer, se eu gostava de desenhar e o que eu gostava de fazer.

Muito fã do Ayrton Senna, eu queria ser piloto de Fórmula 1. Também disse que preferia pintar a desenhar, pois me achava péssimo com desenhos – o que depois descobri que era só falta de prática. Mas eu gostava mesmo era de jogar bola, fazer guerra de mamona e brincar de pique no quintal de casa.

A psicóloga então me perguntou: se você encontrasse uma lâmpada mágica e o gênio da lâmpada lhe oferecesse o direito a 3 desejos, o que você pediria? Eu respondi que queria que todas as crianças também tivessem brinquedos; que o conflito no Peru acabasse (Governo Fujimori, né?); e que houvesse paz no mundo. Acabei constrangido com a reação dela, ao me questionar se eu não gostaria de nada pra mim. É evidente que eu queria uma baita coleção de Lego, uma camisa do Flamengo e uma bola nova, mas achava as outras coisas prioridades diante de um poder tão grande. Ela não pôde deixar de concordar, mas ainda me pego pensando no porque disse isso.

Macaé era uma cidade de pescadores e petroleiros, como se pode imaginar, detentora de uma desigualdade absurda. Meus vizinhos eram ou muito ricos ou muito pobres. Eu, filho de uma trabalhadora petroleira, técnica em química, não entendia por qual razão eu morava numa casa antiga e humilde ao pé do Morro do Carvão, enquanto alguns amigos viviam em barracos de madeira e sem banheiro no alto do morro ou na beira da linha do trem e outros habitavam casarões na rua de baixo. Éramos do mesmo bairro e eu brincava com todos, mas eles sequer se conheciam. Os recortes raciais e de classe eram óbvios e flagrei por diversas vezes sua violência. Esse conflito me incomodava muito e formou meu modo de enxergar o mundo.

Aos 13 anos, quando deixei o interior e cheguei à Baixada Fluminense, encarei outro tipo de desigualdade. Eram desigualdades e violências naturalizadas diante de outras estruturas e de oportunidades diferentes, tudo me pareceu ainda mais brutal. Ora, se realidades tão distintas possuíam desigualdades tamanhas, então havia algo maior por trás disso tudo.

Como também se pode imaginar, cursar Ciências Sociais foi meu modo de tentar entender, explicar e contribuir frente a desigualdade e as consequências do neoliberalismo que vi em Macaé e em Nilópolis. Antes desse passo, porém, duas figuras mudaram meu modo de ver e vivenciar isso tudo. Foi ao conhecer as histórias de Mohandas Karamchand Gandhi e de Martin Luther King Jr. que compreendi a possibilidade de conciliar saberes e práticas de quem se indigna mundo afora e aqui. Eu devia compreender as experiências outras e as nossas para enfim enfrentar o problema.

Conhecer a luta anticolonial, por autodeterminação dos povos e pelos direitos humanos foram determinantes para que eu criasse em 2011 o coletivo Nilópolis Debate, uma organização de viés horizontal, fundada em práticas democráticas e na participação popular. Manter minha vida e meu ativismo na Baixada Fluminense são atos políticos dos quais, apesar do preço e das ameaças contra minha vida, não me arrependo, pois me matam e me reavivam todos os dias. Assim aprendi.

Após 73 anos da passagem de Mahatma Gandhi e 53 de Dr. King, suas práticas políticas seguem influenciando gerações inteiras na luta contra as desigualdades e por justiça social. Somos pessoas conscientes de que o mundo que queremos construir não surgirá de uma única cabeça iluminada, caridosa, distante e solitária, pois esse mundo já existe, construído pelas mãos ásperas do trabalho resiliente, diário e coletivo nas periferias de todo o planeta. São elas que têm muito a ensinar.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Covid-19 e a criminalização do Carnaval

Há 70 anos, minha família materna deixou o nordeste e se instalou em Nilópolis, ao lado da Beija-Flor. Sempre ouço suas histórias e vejo seu poder de mobilização com a comunidade. Apesar dos problemas decorrentes, a escola é o maior motivo de orgulho e identidade do nilopolitano.

Também sou neto de uma baiana e velha guarda da Beija-Flor de Nilópolis. Ainda criança, via o trabalho da Vó Geralda começar no outono e então ansiava até o dia em que enfim a veria na TV. Esse era o meu modo de conexão com minha avó paterna, sempre presente, apesar da distância.

Todo ano eu assistia o maior show da Terra varar noite e madrugada por dois dias pra depois desaparecer e recomeçar do zero. O carnaval me ensinou cedo sobre os modos de reinvenção da vida, esse saber tão próprio da periferia e de suas ancestralidades. Somos vários, nunca sós.

Quando soube do recente cancelamento do carnaval, logo me lembrei dela. O samba foi sua razão de vida e foi no samba que ela se foi. Após uma apresentação da velha guarda pelo interior de Minas Gerais, regada a muito samba e a cervejinha que tanto gostava, Dona Geralda descansou.

A vó não viu o governo anticarnaval de Crivella e a pandemia afetarem drasticamente toda a cadeia produtiva do carnaval. Também não viu o cancelamento do carnaval de rua e a ameaça que assombra os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e na Intendente Magalhães.

Muito além dos furdunços pelas zonas abastadas do Rio, há tempos os blocos de bairro, festas de rua e escolas de samba sofrem ataques. Agora, conservadores e racistas se unem aos progressistas elitizados pela total restrição da festa majoritariamente negra, pobre e periférica.

É evidentemente injusto cancelar um carnaval distante, semanas antes, enquanto festas, shows, cultos, eventos esportivos e toda sorte de aglomeração ocorrem neste momento em espaços privados, sob uma nova onda de Covid-19. Não seriam essas as ameaças que demandam restrição agora?

O novo surto foi agravado pelo réveillon e suas festas privadas, inclusive em locais fechados e sem ventilação, que continuam sem qualquer impedimento ou fiscalização. Isso só escancara a desigualdade, a elitização e a criminalização que tanto tentam impor contra as periferias.

Na contramão disso, as festas e demais expressões populares de rua são canceladas com urgência e antecedência sem precedentes: 55 dias. Logo, fica a suspeita sobre o que de fato define quem pode ou não pode curtir, se é mesmo o cuidado ou o poder econômico, o status e a grana.

Certa vez, para contrapor a influência do financiamento privado das campanhas eleitorais na política do Rio, um camarada que muito admiro disse que “quem paga a banda, escolhe a música”. Eu concordo. Hoje quem paga a banda só aceita dividir o samba com quem comprou ingresso.

E como ficarão os camelôs, os trabalhadores informais, os pequenos blocos e demais trabalhadores do carnaval pelos subúrbios e periferias? Não é possível impor a essas pessoas mais um ano sem trabalho e renda, principalmente diante da maior crise econômica da história do Rio.

Em primeiro lugar, precisamos de uma política de enfrentamento à pandemia que seja efetiva, democrática e garanta tratamento justo e igualitário para todas as pessoas, respeitando suas diferenças e especificidades. Os protocolos de cuidado devem valer para todos, sem distinção.

Os governos municipais e estadual junto à iniciativa privada ligada ao carnaval também devem compor e garantir políticas de auxílio, apoio e fomento a todos os trabalhadores que ficarão sem trabalho, renda e encantamento pelas ruas da capital, da Baixada e do Leste Metropolitano.

Tais medidas podem abrir caminho para a retomada econômica de um estado que perdeu cerca de 800 mil empregos e possui 1,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Ante os R$ 14 bilhões da venda da Cedae, é o mínimo que se pode esperar dos prefeitos e do governador Cláudio Castro.

O samba é inaugural. Quando ouve o batuque pela primeira vez, a criança estranha, mas logo se envolve e dança. Quando empunha um galho e o toca no chão, já apreende sua língua. Ao tomar o lápis entre os dedos, risca e cria.

Se só os ricos podem dançar, não é meu carnaval.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Com contribuições do jornalista William Faria.

Mãos ao alto: R$ 7 é um assalto

Em 2013, ao escrever sobre o aumento das passagens em Nilópolis, cravei que a cidade possuía o quilômetro rodado mais caro do Brasil. Desde então, sempre que acordo e descubro um novo reajuste nas tarifas, me sinto como Bill Murray em Feitiço do Tempo e revejo o velho texto.

Há quase 10 anos, na esteira das mobilizações que tomaram as ruas por todo o país, nossa mobilização colocou milhares de pessoas nas ruas de Nilópolis, forçando o então prefeito Alessandro Calazans a voltar atrás. Sim, nós barramos o aumento das passagens dos ônibus municipais.

O contexto político e econômico agora é outro. Tal como o Brasil, o estado do RJ afundou numa crise sem precedentes. Perdemos 800 mil empregos só nos últimos 5 anos e, hoje, somos 1,5 milhão de desempregados e 2 milhões em situação de pobreza, todos sem perspectiva de mudança.

O que também não muda é o impacto de um transporte caro e precário sobre a vida das pessoas. Naturalizamos o movimento pendular ao trabalhar ou estudar longe de casa e voltar ao fim do dia. Essa bola de demolição é a exploração extra de quem vive nos subúrbios e nas periferias.

De acordo com o Mapa das Desigualdades produzido pela Casa Fluminense, cerca de 42% dos moradores de Nilópolis que possuem vida profissional ativa trabalham no Rio de Janeiro. Muitos estudantes e pessoas em busca de serviços diversos também se deslocam diariamente rumo à capital.

A forma mais barata de se chegar ao Rio ainda é pelos trens da SuperVia. Entretanto, a passagem que hoje já custa R$ 5 chegará aos R$ 7 a partir de fevereiro. Em muitos casos, ainda é preciso tomar mais um ônibus ou o metrô, cuja tarifa por meio do Bilhete Único totaliza R$ 8,55.

Assim, se esse morador de Nilópolis for 5 dias por semana ao Rio, seu custo mensal é de pelo menos R$ 342, podendo chegar à marca anual de R$ 4.446. Isto é, o estudante, trabalhador e/ou empregador precisa arcar com mais de 4 salários-mínimos apenas para despesas de deslocamento.

Nilópolis, 1975 / Jornal do Brasil

E se, por acaso, esse mesmo nilopolitano ainda carecer de um ônibus municipal para chegar à estação de trem, a conta pode chegar a incríveis R$ 25,00 por dia ou R$ 500,00 por mês. São R$ 6.500,00 por ano, sem incluir alimentação e outros gastos essenciais. Dá mesmo pra se viver?

Com o aumento das tarifas, agrava-se também a dificuldade de contratação de quem mora nos subúrbios e periferias. Devido ao alto custo de seu deslocamento, as raras e já muito concorridas vagas de emprego sempre serão destinadas àqueles que demandam um menor custo ao empregador.

Por isso, não é incomum vermos trabalhadores arcarem com o valor parcial ou total de sua passagem, além dos 6% descontados de seu salário para o vale-transporte. Na atual conjuntura, muitos topam pagar para conseguir algum emprego, exemplo da brutal precarização da vida no Rio.

O transporte público, afinal, se tornou o principal custo diário dos trabalhadores nas metrópoles afora. No Rio, a ineficiência do serviço é acentuada pelas desigualdades e por seu histórico projeto de gentrificação — empregos em zonas nobres e distantes da maioria da população.

Neste cenário, fica evidente que qualquer reajuste é perverso e injusto. Para debater a questão com seriedade, é preciso democratizar o processo, com uma efetiva transparência nas contas das empresas do transporte público e ampla participação popular nas análises e nas decisões.

Mais do que isso, combater a crise no Rio é enfrentar seu projeto histórico de apartamento e apagamento do povo, dos centros para o subúrbio, Baixada e favelas. Só construiremos uma cidade mais justa, democrática e para as pessoas por meio de uma efetiva e popular Reforma Urbana.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

 

Natal sem água na Baixada e a privatização da CEDAE

Na Baixada Fluminense, muitas casas tiveram seu Natal atravessado por um antigo problema da região: a falta d’água. Não bastasse a penúria que recaiu sobre a ceia das famílias, moradores de Nova Iguaçu, Mesquita, Japeri e imediações também ficaram sem água em plena noite de Natal.

Segundo a concessionária Águas do Rio, um reparo de emergência foi necessário, causando o transtorno. Na antevéspera, a chuva também causou interrupção.

– Como é que eu vou fazer as coisas de Natal? Alguém tem que fazer alguma coisa – disse a moradora iguaçuana Flavia Amaral.

Alguém fez. Em agosto, o governo Cláudio Castro privatizou por regime de concessão a distribuição de água e a coleta de esgoto de boa parte da região metropolitana do Rio. Exceto na Zona Oeste que, devido ao conflito territorial com milícias, a concessão não atraiu compradores.

Assim, enquanto a CEDAE se mantém responsável por captar e tratar a água, a nova concessionária Águas do Rio – uma empresa da Aegea Saneamento – fica responsável pelos demais serviços. O novo consórcio possui como sócios a Equipav, o GIC (Fundo Soberano de Cingapura) e a Itaúsa.

A medida segue na contramão de diversas cidades ao redor do mundo que tiveram o tratamento e a distribuição de água privatizados nos últimos anos e, hoje, retomam o controle através da reestatização dos respectivos equipamentos e serviços públicos.

Paris, Berlim, Buenos Aires, La Paz e outras centenas de cidades passaram a reconhecer a água como direito e a enfrentar a precarização do serviço ao modificar a lógica que valoriza o interesse privado (lucro) em detrimento do interesse público sobre itens essenciais à vida.

Se a água enquanto direito não deve ser tratada como uma simples commodity, como mera mercadoria suscetível ao lucro e aos interesses privados, as mudanças ambientais agravam esse cenário. Hoje, a água se mostra como recurso estratégico para o futuro e a vida do planeta.

Até então, a CEDAE fora uma empresa pública lucrativa para o governo do estado, mas sofreu com anos de precarização e falta de investimentos. A experiência Brasil e mundo afora, porém, mostra que a privatização também não garantiu saneamento básico adequado para as pessoas.

Em 2022, nos resta escolher o melhor governo para a necessária reconstrução do estado do Rio de Janeiro, tendo em vista uma política aliada ao resgate de valores inegociáveis: a defesa do meio ambiente e a garantia de direitos. O lucro não pode estar acima da vida.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Natal para agradecer e perdoar

Hoje é dia de agradecer e perdoar.

O ano de 2021 trouxe boas novas no enfrentamento à pandemia, mas ainda foi muito duro para todo mundo – especialmente para o Brasil, onde a dificuldade, o desemprego, a intolerância, a doença e a fome parecem ter feito morada.

Se nesse Natal devemos reconhecer o esforço e agradecer, o devemos a todos aqueles que estiveram nas mais diversas linhas de frente, no enfrentamento à doença e as suas consequências: médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares, professores, garis, faxineiros, capelães, atendentes, motoristas, entregadores e todos os trabalhadores que jamais pararam ou puderam parar. Muito obrigado!

Hoje também devemos praticar o perdão. O perdão, apesar daqueles que se aproveitam da fé e da fragilidade do povo para difundir suas ideias intolerantes; apesar daqueles que se aproveitam ou ridicularizam da dor de quem sofre; apesar daqueles que oferecem empréstimos a quem mais precisa e os endividam sem possibilidade de saída; apesar daqueles que exploram a força de trabalho alheia sem garantia de direitos e de dignidade. É dia de perdoar, apesar de quem faz do ódio caminho, do mal banalidade e toma a morte como projeto.

Diferente do que muita gente pensa, o perdão não trata do esquecimento, da reconciliação ou da tolerância. Perdão não trata do outro, tampouco significa esquecer. Perdão é lidar com o problema. Perdão é a reconciliação consigo mesmo, é a reparação para ter tranquilidade e não sofrer quando lembrar. O perdão é seu e de ninguém mais. Perdão é lembrar pra que nunca mais aconteça.

Jesus disse que nós somos o sal da terra e a luz do mundo. Então, que sejamos exemplo de valores outros que não o do status, que não o das coisas materiais. Sejamos exemplo de perdão, na fome e sede por justiça.

Saibamos agradecer e perdoar. Que, enfim, sejamos amor!

Feliz Natal!🎄💫

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Contra o discurso de Bolsonaro, a prática de Brizola

Essa é a verdade sobre o suposto discurso de defensor da família e dos bons costumes de Bolsonaro. Hoje exalta o uso de armas por crianças e tenta impedir a vacinação dos pequenos (já autorizada pela ANVISA).

Em oposição a isso, temos o exemplo prático de Leonel Brizola. Num ato político com a Associação de Moradores do Amarelinho, conjunto habitacional em Coelho Neto, o velho Briza pulou a fogueira feita com as armas de brinquedo das crianças da comunidade.

Por falar nisso, o Amarelinho fica pertinho do CIEP Dr. Adão Pereira Nunes, em Irajá. Mais do que discurso, Leonel Brizola e Darcy Ribeiro transformaram a história da educação ao construir mais de 500 escolas voltadas para a educação integral, isto é, voltada para a formação e o cuidado do aluno em todas as áreas e dimensões.

Não acredita? Pois os Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs), também conhecidos como “brizolões”, tinham aula das 8 às 17 horas, oferecendo o currículo regular de ensino, atividades culturais, estudos dirigidos, educação física, ginásio, biblioteca, refeições completas (café, almoço, lanche e janta), atendimento médico e odontológico, além de uma atenção especial às crianças carentes que viviam nas ruas.

E Bolsonaro, o que oferece para nossas crianças?

Contra o discurso de Bolsonaro, a prática de Brizola!

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

As contribuições da literatura em tempos difíceis

Tempos difíceis esses das crises em demasia, do muito sobre o prazeroso, dos corpos como mercadoria, da devastação pelo lucro e da grana acima da vida.

Os valores que nos organizam em consumo e quantias não dão conta das subjetividades e das relações sensíveis que resistem em nosso viver.

A literatura tanto sofre quanto confronta perante a realidade. Mesmo convertida em produto para o lucro, ela tem esse estranho poder de transcender aos limites tacanhos da mercadoria.

A arte expõe aquilo que o exame quantitativo e racional não dão conta, aquilo cujo projeto é que, de fato, nós não demos conta.

A literatura não contrapõe a verdade, apenas retira o véu que encobre verdades outras, mesmo óbvias, essas que cotidiano insiste em se nos alienar.

As condições como vivemos, o jeito como o fazemos, o modo como encaramos o mundo e enfrentamos tudo aquilo que nos impede de fazê-lo, tudo plenamente escancarado – e para transformá-lo – em palavramundo.

“A arte existe porque a vida não basta.” — Ferreira Gullar

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Municipalização do Hospital de Saracuruna e a Baixada Fluminense

A prefeitura de Duque de Caxias anunciou sua intenção de municipalizar o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, mais conhecido como Hospital de Saracuruna, na Baixada Fluminense. Quais são os impactos disso sobre a Baixada Fluminense?

A prefeitura já havia assumido a cogestão do hospital em julho de 2020, em meio à pandemia. Depois, o hospital ficou sob nova direção privada, apesar das diversas denúncias sobre o processo para sua escolha. Diante da precarização dos serviços e dos atrasos sobre salários e benefícios dos profissionais, desde outubro, uma outra organização social (OS) administra o hospital.

Entretanto, nesta quinta-feira, dia 10, o Governo do Estado recuou da decisão. Enquanto o governador Cláudio Castro (PL) diz ter firmado apenas um termo de compromisso para melhoria do atendimento no hospital, o prefeito Washington Reis (MDB) disse que a cidade tem plena capacidade de administrar o Hospital de Saracuruna, ao apresentar um protocolo de intenções favorável à municipalização.

Dito isto, a proposta de municipalização pode parecer boa, não é mesmo? A própria descentralização da gestão e das políticas de saúde no país – realizada entre a União, os estados e os municípios de forma integrada – é um dos princípios organizativos do Sistema Único de Saúde – SUS. Entretanto, precisamos analisar os dados mais a fundo.

Dados do Ministério da Saúde apontam que:

– Enquanto a cobertura de atenção básica no Rio alcança 58,94% da população, em Caxias ela alcança 45,41%;

– Já a cobertura de equipes da família no Rio é de 47,55%, enquanto em Duque de Caxias é de 29,26%;

– Se 33% das gestantes têm consulta pré-natal no Rio, Caxias atende apenas 5%.

Em nota, o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (COSEMS/RJ) alerta para o perfil regional do Hospital de Saracuruna, inclusive de caráter estadual para alguns procedimentos. A unidade é a principal referência para casos de trauma e alta complexidade na região.

“Vale ressaltar que a unidade é a principal referência para casos de trauma da Baixada Fluminense, e que, 50% dos pacientes críticos (vaga zero) tem nessa unidade sua referência, além de estar localizada numa região que possui a menor relação leito/habitante de todo Estado do Rio de Janeiro (0,6/1000 habitante)”, afirma Rodrigo Oliveira, presidente do Cosems-RJ e secretário municipal de saúde de Niterói. 

A municipalização também é contestada pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público, pela Assembleia Legislativa (ALERJ) e pelas próprias secretarias municipais de saúde dos municípios da Baixada Fluminense.

Por isso, para estabelecer critérios efetivos de garantia de acesso à saúde, qualquer iniciativa desse tipo não pode ser tomada sem um amplo debate entre os gestores municipais e estadual. Esse é um debate que deve ser municipalizado, mas travado, no mínimo, por toda a Região Metropolitana.

Vale lembrarmos os fundamentos doutrinários e organizativos do SUS: a universalização, a equidade, a integralidade, a descentralização e a participação popular.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Destruição Final e a ficção catastrófica em tempos de pandemia

Destruição Final: O último refúgio junta filme-catástrofe, ufanismo estadunidense, moral cristã e Gerard Butler, todas características típicas do cinema pipoca. Por meio da jornada heróica ante a tragédia planetária, o filme articula todos os clichês que gostamos e termina numa sensível metaficção.

Porém, fico com a impressão de que o “encanto da catástrofe”, a fantasia entre a barbárie e a caridade, se perde um tanto perante a tragédia que vivenciamos atualmente. Se resistir às explosões é ficção exagerada, algumas relações – centrais para o enredo do filme – também podem passar a soar como tal, ainda que nos emocionem.

Vale uma reflexão a respeito da recepção das obras pelo público ao compará-las com a catástrofe que habita suas memórias recentes, os noticiários e o cotidiano vivido. Agora tais questões ultrapassam os sentidos construídos por artifícios ficcionais e são contraditos pelo real.

Dito isto, quais serão os impactos da pandemia sobre a indústria cultural? Ainda que compreenda as nuances sensíveis e os clichês que se inscrevem no presente, penso se deveríamos fazê-los do mesmo modo que antes, como se agora não compreendêssemos um pouco mais acerca de sobreviver.

Ric Roman Waugh não solucionou o desafio, mas aponta um caminho na voz de uma criança: “Meu amigo Teddy disse que a vida passa como um filme quando a gente morre. Acho que seria melhor se fosse enquanto estamos vivos. A gente veria as lembranças boas e ficaria feliz”. Poético, né?

Para além das reflexões, o filme cumpre seu papel e entretém. Pra quem curte, um bom filme.

Destruição Final: O último refúgio (EUA: Greenland, 2020) está disponível na plataforma Amazon Prime Video.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.

BBB e a crueldade cotidiana

No BBB, as agressões contra Lucas Penteado articulam uma série de violências que estruturam nossa sociedade, com destaque para o racismo, o capacitismo e o punitivismo. Nesta lógica, o indivíduo que não se adequa às normas e aos padrões da sociedade deve ser punido e excluído.

A situação torna-se explícita diante da contradição de gente que se mostra crítica aos padrões socialmente impostos, mas situações semelhantes ocorrem na rua, na escola, no trabalho, na família e em outros círculos sociais a todo o tempo.

O punitivismo não opera contra o crime, mas determina quem será o criminoso e o desumaniza. Assim, aqueles que não seguem as regras, os fora dos padrões, são tachados de “loucos”, “criminosos”, não servem e, por isso, são desumanizados, condenados à exclusão social, à tortura e à morte.

Desta maneira, o punitivismo também reforça o lugar do justiceiro e a lógica do justiçamento, isto é, do se fazer justiça pelas próprias mãos. Como se não fosse o bastante, ele também estabelece o detentor do poder naquela relação, reforçando os estigmas de quem “não serve” e os padrões do grupo dominante.

O BBB dá uma amostra de um dos traços mais cruéis que estruturam a cultura ocidental no decorrer da história.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.