Quando conheci Mahatma Gandhi e Dr. King

Me lembro como se fosse hoje. Quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, ainda em Macaé, passei a ter minhas primeiras crises de enxaqueca. Fui ao médico, mas minha saúde estava perfeita, nada além de certa intolerância a corantes e conservantes. Como eu era muito tímido, orientada pelo médico, minha mãe me levou a uma psicóloga. Lembro que ela era muito carinhosa e me fez perguntas típicas que fazemos às crianças, como o que eu queria ser quando crescer, se eu gostava de desenhar e o que eu gostava de fazer.

Muito fã do Ayrton Senna, eu queria ser piloto de Fórmula 1. Também disse que preferia pintar a desenhar, pois me achava péssimo com desenhos – o que depois descobri que era só falta de prática. Mas eu gostava mesmo era de jogar bola, fazer guerra de mamona e brincar de pique no quintal de casa.

A psicóloga então me perguntou: se você encontrasse uma lâmpada mágica e o gênio da lâmpada lhe oferecesse o direito a 3 desejos, o que você pediria? Eu respondi que queria que todas as crianças também tivessem brinquedos; que o conflito no Peru acabasse (Governo Fujimori, né?); e que houvesse paz no mundo. Acabei constrangido com a reação dela, ao me questionar se eu não gostaria de nada pra mim. É evidente que eu queria uma baita coleção de Lego, uma camisa do Flamengo e uma bola nova, mas achava as outras coisas prioridades diante de um poder tão grande. Ela não pôde deixar de concordar, mas ainda me pego pensando no porque disse isso.

Macaé era uma cidade de pescadores e petroleiros, como se pode imaginar, detentora de uma desigualdade absurda. Meus vizinhos eram ou muito ricos ou muito pobres. Eu, filho de uma trabalhadora petroleira, técnica em química, não entendia por qual razão eu morava numa casa antiga e humilde ao pé do Morro do Carvão, enquanto alguns amigos viviam em barracos de madeira e sem banheiro no alto do morro ou na beira da linha do trem e outros habitavam casarões na rua de baixo. Éramos do mesmo bairro e eu brincava com todos, mas eles sequer se conheciam. Os recortes raciais e de classe eram óbvios e flagrei por diversas vezes sua violência. Esse conflito me incomodava muito e formou meu modo de enxergar o mundo.

Aos 13 anos, quando deixei o interior e cheguei à Baixada Fluminense, encarei outro tipo de desigualdade. Eram desigualdades e violências naturalizadas diante de outras estruturas e de oportunidades diferentes, tudo me pareceu ainda mais brutal. Ora, se realidades tão distintas possuíam desigualdades tamanhas, então havia algo maior por trás disso tudo.

Como também se pode imaginar, cursar Ciências Sociais foi meu modo de tentar entender, explicar e contribuir frente a desigualdade e as consequências do neoliberalismo que vi em Macaé e em Nilópolis. Antes desse passo, porém, duas figuras mudaram meu modo de ver e vivenciar isso tudo. Foi ao conhecer as histórias de Mohandas Karamchand Gandhi e de Martin Luther King Jr. que compreendi a possibilidade de conciliar saberes e práticas de quem se indigna mundo afora e aqui. Eu devia compreender as experiências outras e as nossas para enfim enfrentar o problema.

Conhecer a luta anticolonial, por autodeterminação dos povos e pelos direitos humanos foram determinantes para que eu criasse em 2011 o coletivo Nilópolis Debate, uma organização de viés horizontal, fundada em práticas democráticas e na participação popular. Manter minha vida e meu ativismo na Baixada Fluminense são atos políticos dos quais, apesar do preço e das ameaças contra minha vida, não me arrependo, pois me matam e me reavivam todos os dias. Assim aprendi.

Após 73 anos da passagem de Mahatma Gandhi e 53 de Dr. King, suas práticas políticas seguem influenciando gerações inteiras na luta contra as desigualdades e por justiça social. Somos pessoas conscientes de que o mundo que queremos construir não surgirá de uma única cabeça iluminada, caridosa, distante e solitária, pois esse mundo já existe, construído pelas mãos ásperas do trabalho resiliente, diário e coletivo nas periferias de todo o planeta. São elas que têm muito a ensinar.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.