A solidão de nós todos (ou o exílio no país dos espelhos)

Um dos conceitos mais desenvolvidos na modernidade é o conceito de solidão. A palavra é relativamente recente em nosso uso cotidiano, cada vez mais presente após a Revolução Industrial. Na literatura, por exemplo, não são poucos os exemplos que confirmam a informação.

Entre as questões que surgem no livro A Resistência, de Julián Fuks, expressa pelo próprio narrador, está o exílio. Seria o exílio herdado dos pais pelos filhos? A pergunta se soma à solidão latente que a todo tempo se desdobra pela narrativa. Deste modo, aspectos de resistência política, da vida pública, se misturam a aspectos mais subjetivos, de esfera pessoal, da vida privada.

Para escrever o romance, Julian se baseou na sua própria história de vida: a memória de seus pais, militantes políticos de esquerda e exilados no Brasil durante a ditadura argentina; a relação com seu irmão adotado ainda no período; os impactos de uma nacionalidade difusa, enquanto sujeito nascido no Brasil durante o exílio dos pais argentinos; os respectivos contextos históricos dos fatos; e demais perspectivas pessoais. Por isso, o autor reivindica sua obra sob o conceito de pós-ficção, pois integra gêneros e dispositivos narrativos que transbordam o romance, mas não têm pleno compromisso com o real.

Outra autora que aborda a solidão, mas por um viés não-ficcional, é Hannah Arendt, que têm sua vida marcada por alguns dos mais trágicos eventos históricos do século XX, como a Segunda Guerra Mundial. Alemã e judia, Arendt exilou-se nos Estados Unidos após fugir do horror nazista. Em seu livro Origens do Totalitarismo, Arendt discorre sobre dois conceitos importantes para a compreensão do poder totalitário: o isolamento e a solidão.

Para Arendt, uma das preocupações fundamentais de todo governo tirânico é provocar o isolamento entre as pessoas, sob a característica da importância, isto é, a incapacidade de agir por não haver com quem agir, uma vez que “a força sempre surge quando os homens trabalham em conjunto”. Neste contexto, você não necessariamente está sozinho, mas se sente incapaz de agir por não poder se associar ou se organizar junto aos demais – entretanto, sua capacidade de sentir, de inventar e de pensar permanecem.

Por outro lado, o poder totalitário institui uma novidade diante da prática tirânica. Esta nova organização é baseada não no isolamento, mas na solidão, na restrição da própria companhia humana, “na experiência de não se pertencer ao mundo, que é uma das mais radicais e desesperadas experiências que o homem pode ter”.

Atualmente, somos impelidos a nos isolarmos pela tecnologia, pelas relações de consumo e produção ou mesmo pela visão de mundo divergente. A crise da alteridade, isto é, o conflito na relação do ‘eu’ com o ‘outro’, conforme nos alerta Byung-Chul Han em Agonia do Eros, se subscreve na necessidade de contínua afirmação de si mesmo, tão presente em nosso cotidiano.

Este ‘eu’ não necessariamente é o ‘eu’ da experiência, de afetos e sentidos, mas um ‘eu’ visto e imaginado no espelho, criado por uma narrativa própria de ideal para si. Assim se reafirmam os padrões positivos presentes nos postos de trabalho executivos, na grande mídia e nas redes sociais, a massiva exibição de uma suposta vida privada enquanto vida pública ausente de negatividade e idealizada.

Do mesmo modo, tudo aquilo que contrapõe a normatização positiva, de uma perfeição performada, é resguardada de tal maneira que, ao confrontar-se perante a existência da negatividade, o outro que a carrega é julgado inimigo, como agente de enfrentamento ao padrão hegemônico e, por isso, precisa ser refutado, apagado e destruído. Tal mecanismo é facilmente notado na reafirmação dos padrões de gênero, raça, classe, orientação sexual, religião, ideologia, epistemologia e nos mais diversos e sensíveis aspectos da vida em sociedade.

Os referidos aspectos retiram os véus que recaem sobre o autoritarismo sensível na contemporaneidade, que se retroalimenta na apartação, no isolamento e na solidão não só do outro, mas também de si mesmo. De certa maneira, parece que todos estamos discutindo com o espelho – ou com o que gostaríamos que fosse espelho, enxergando um ideal de imagem a ser refletida e refutando o emissor, o real e a si mesmo.

Bem, nesta perspectiva, ninguém está só. E você, como se sente em exílio no país dos espelhos?

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.