Como ser mais criativo com café com leite

Quando crianças, nos metemos a fazer toda e qualquer coisa. Há um pequeno – mas irrestrito – mundo de descobertas e aprendizados ao qual nos empenhamos a desbravar sem rodeio ou julgamento. A partir de uma intensa curiosidade, agravada pelas visíveis limitações do ser criança, perguntamos, testamos e fazemos de um tudo sem darmos bola para os resultados e as consequências. Tudo é brincadeira.

Não por acaso, Maria Montessori dizia que “brincar é o trabalho da criança”, ofício alvo de grande dedicação e seriedade pelos pequenos. Também Paulo Freire relata como, antes de sua primeira leitura da palavra, foi a leitura do mundo de seu quintal – sentindo o vento, ouvindo os passarinhos, afetando e sendo afetado pelas relações familiares e tomando outras expressões da vida como textos – que lhe cultivou o significado das coisas. Quanto mais experimentava, mais aumentava sua capacidade de perceber.

Ao nos tornarmos adultos, a exigência de experiência na vida profissional toma a palavra em sentido outro. A importância dessa experiência deixa de ser a do aprendizado e dá lugar a valores como performance, resultado e lucro. O objetivo almejado passa a ser o rendimento, enquanto a percepção sensível é retirada da equação. Por vezes, essa distorção se evidencia na contradição das demandas empresariais, que supõem almejar trabalhadores inovadores e criativos, mas não valorizam o ‘criar’ tanto quanto valorizam os seus ‘ativos’.

Entretanto, antes da fase adulta, elaboramos uma curiosa definição que é sintoma inicial desse rompimento: o café com leite. Ainda crianças, quando queremos ampliar as restrições do mundo ao qual nos permitem explorar, começamos a participar de atividades junto a quem tem mais experiência e, consequentemente, mais habilidade. Para que possamos participar do jogo ou da brincadeira dos mais velhos sem o mesmo nível de cobrança e rendimento, somos tachados de café com leite.

O termo café com leite carrega consigo certo sentido pejorativo, pois define aquele indivíduo que não sabe fazer algo que, relativamente e num contexto específico, todo mundo sabe. Por vezes, a expressão é usada como ofensa de fato. Ainda que sua existência reconheça certo valor da experiência como sentido de aprendizado, ou mesmo como prazer ao se viver o momento junto aos demais, seu estigma negativo transforma sua importância em valor de rendimento, pouco a pouco, rumo à proficiência exigida pela vida adulta.

Todavia, a verdade é que o conceito de café com leite desvela o confronto entre duas visões de mundo muito distintas.

De um lado, há a pressão de uma ideologia neoliberal, que domina boa parte da nossa vida contemporânea, calcada no capital e, por isso, em performances e resultados. Nessa perspectiva, a realidade é destituída de valor inteligível, isto é, tudo aquilo que é construído pela experiência – o ser, a beleza, o prazer, a sensibilidade – dá lugar à construção material e objetiva, onde tudo acaba por ter utilidade e/ou valor de mercado, tudo vira mercadoria. Um exemplo prático disso é quando nos definimos enquanto indivíduos pelas imagens que inventamos de nós mesmos, seja pela profissão que adquirimos (por grana), pela mercadoria que consumimos (por status) ou pelo que criamos de nós nas redes sociais (por likes). 

Hoje valorizamos um olhar ilusório, ausente de negatividade, e demasiadamente individualista sobre a experiência, como a selfie do influenciador digital numa viagem paradisíaca que você provavelmente jamais poderá fazer. Tal olhar reproduz a lógica de fetiche, de (pouca e cara) oferta e (muita) demanda, razão própria do mercado. O sentido de performance se apropria das experiências como algo comerciável e, assim, todo dia vendemos a nós mesmos como uma mera mercadoria – mas ele mal imagina que aquela viagem cheia de gente e perrengue em Muriqui seria muito mais marcante que as fotos incríveis em Dubai.

Ok, Muriqui pode ser exagero. Porém, do outro lado, há uma filosofia que remonta o período pré-socrático, de valorização da experiência, do aprendizado e da transformação contínua enquanto sentido. Os gregos da antiguidade viam a vida como seu gênero teatral preferido: a tragédia. Na tragédia, o objetivo não é o fim, do qual jamais temos controle e nada podemos prever, mas sim o processo, a própria experiência.

Por isso, Heráclito disse que ninguém pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo, nem tão pouco o indivíduo. Com esse mesmo senso, mais recentemente, Raul Seixas escreveria a canção Metamorfose Ambulante, abraçando o amor e o horror em seus versos. Aqui, a performance e o resultado não são estimados, pois valoriza-se a jornada e a consequente transformação do ser no decorrer do tempo e no mundo.

Nessa perspectiva, acredita-se – sem a necessidade de taxa de juros – que a vida não se dá em laboratório, sob condições normais de temperatura e pressão, e que dificilmente se traduz em 2 + 2 = 4 – sem falar na quase impossibilidade de encontrar dois números inteiros e idênticos na natureza. Assim, é possível refutar a representação do real, a metafísica, como o real factual, pois a realidade é incerta e imperfeita sob a perspectiva dos anseios humanos. O foco excessivo em rendimentos tem como consequência uma visão insensível e deturpada do mundo.

Quem trabalha com criatividade ou reconhece o valor do senso criativo nas soluções necessárias para a vida contemporânea já sabe como uma concentração excessiva na performance e no resultado podem atrapalhar o processo de criação. Para o escritor Austin Kleon, os grandes artistas são capazes de reter o prazer da brincadeira e certo estado lúdico infantil durante a carreira, indicando que o verdadeiro trabalho é o primeiro que exercemos: brincar.

E antes que o leitor me chame de brincante, não almejo aqui fazer um enfrentamento inconsequente contra o trabalho, o profissionalismo, a formação adequada ou a dedicação às diversas áreas de ofício e conhecimento da atualidade. Tudo isso é importante e já domina todas as esferas da vida cotidiana, é evidente. Esse texto é uma provocação àqueles que propagam uma visão distorcida da realidade tendo o lucro como único fim, mas também um indicativo de caminho para aqueles que, com razão, se reconheçam presos à uma lógica de insensibilidade, performance, consumo e exploração.

Uma outra realidade é possível e necessária: volte a brincar no seu quintal.

Quando a vida lhe cobrar uma atitude, não seja um profissional café com leite, alguém que ignore a realidade para pensar na imagem, na grana e no resultado; seja café com leite profissional. Tenha um compromisso firmado com a experiência no mundo e sinta o momento, vivencie novas coisas, aprenda com a experiência, transforme a existência e curta a jornada.

Sim, você ainda pode encarar o ser café com leite como entrar numa disputa sem qualquer valor, é claro. Porém, espero que agora você também possa ver e agir de outras formas possíveis – e, quem sabe, mais prazerosas – no seu dia a dia. Ser café com leite é entrar no jogo e apostar aquilo que não tem preço: o momento junto e a experiência mútua. A vida ao lado de quem se gosta é inestimável. Aproveite!


Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.