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Diálogo sobre o ódio

Pensei em escrever esse texto há tempos. Porém, confesso que as vezes me parecia inútil falar sobre escuta, diálogo e empatia diante do caos que tomou a política e a vida na segunda e terceira década do século XXI.

O avanço da extrema direita no mundo, a queda de uma presidente eleita no Brasil sem qualquer crime cometido, a ascensão do negacionismo e do ódio na política brasileira e uma pandemia sem precedentes que tirou a vida de mais de 6 milhões de pessoas por todo o mundo – três dessas pessoas eram familiares que moravam comigo. Nesta conjuntura (ou talvez em qualquer outra), é simplesmente impossível conversar com um indivíduo afeito a teorias da conspiração que escarnece das perdas de tantas famílias, um negacionista antivacina que duvida do papel da ciência no combate à doença, um militante de extrema direita que utiliza uma das maiores tragédias da história da humanidade para ressuscitar os tempos de Guerra Fria ou mesmo um terraplanista e seu planeta que flutua feito um frisbee pelo universo. Não, isso seria pedir demais da sua e da minha paciência.

A política nunca foi um ambiente fácil, é verdade. Só na primeira metade do século XX, o mundo foi atravessado pela pandemia de Gripe Espanhola que vitimou cerca de 17 milhões de pessoas por todo o planeta, duas Grandes Guerras que deram cabo de mais de 100 milhões de vidas, fora a Grande Depressão e outras crises. Na outra metade, tivemos a Guerra Fria – que não deu refresco algum pra quem vivia nas periferias do planeta -, a Guerra do Vietnã, as ditaduras civis-militares na América Latina, as lutas por independência dos povos ainda submetidos ao subjugo colonial e outros tantos confrontos.

Nas duas últimas décadas do século passado, tudo parecia caminhar para um novo mundo. O dito terceiro-mundo enfim conquistava sua autodeterminação, Mandela era solto e o apartheid chegava ao fim na África do Sul, as últimas ditaduras latino-americanas ruíam perante o anseio popular por democracia, o Muro de Berlim caia e representava o fim da Guerra Fria. Naquele tempo, Marty McFly andava sobre skates voadores, Michael Jackson cantava os ensinamentos de Mahatma Gandhi (“seja você a mudança que quer ver no mundo”), Ferris Bueller matava aula para protagonizar um novo modo de encarar a vida, Will Smith tomava um táxi com Quincy Jones da Filadélfia para Bel-Air, enquanto o Scorpions assobiava em Gorky Park os ventos da mudança qual Oyá.

Os conflitos entre as gerações nascidas no século XX, desde os baby boomers e passando pelas gerações X, Y (ou millenials) e Z, promoveram rupturas radicais e exigiram difíceis adaptações na educação, nas relações de  trabalho, nas expectativas sobre o futuro, nos valores e nas maneiras de ver o mundo. Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, todas essas transformações entre as gerações sempre tiveram certo caráter traumático, deixando algumas pessoas pelo caminho, rejeitadas frente às novas demandas do tempo. Entretanto, de um modo geral, as gerações anteriores trabalharam duramente e investiram em seus filhos certos de que, no futuro, a nova geração familiar superaria seus feitos, uma tendência mundial que se manteve por determinado tempo. Sob a crença irrefutável num futuro de vasta sabedoria educacional, melhorias pessoais, avanços econômicos e desenvolvimento humano, muitas famílias investiram pesado na educação de seus filhos, recorrendo ao crédito e a dívidas astronômicas, certas de que a educação superior garantiria a continuidade da mobilidade social de seus descendentes.

Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ainda segundo Bauman, diante da realidade promissora da “reprodução intergeracional do sucesso”, nossos pais e avós semearam a esperança e uma série de expectativas sobre as gerações posteriores, certos de que seus filhos e netos teriam muito mais escolhas e possibilidades, superariam suas conquistas e voariam muito mais alto do que eles almejariam conseguir. Todavia, parece que o relógio toca suas doze badaladas e anuncia a chegada da meia noite, quando a carruagem dourada de um futuro próspero retoma sua forma original de abóbora. Após a primeira década do século XXI, nós compomos a primeira geração do pós-guerra a defrontar uma “expectativa de mobilidade descendente”. Hoje, a certeza está no futuro incerto dos empregos temporários e dos subempregos; dos falsos estágios que visam baratear ainda mais a contratação nos mesmos subempregos; dos microempreendedores individuais que enfrentam as exigências de um subemprego, mas tem negado seus direitos trabalhistas; dos bicos e freelas que mal dão conta da subsistência; dos serviços digitais de transporte e entrega por aplicativos, que impõem regras do século XVIII aos seus funcionários enquanto os chama de colaboradores. Tudo se torna transitório, exceto a crescente lista de desempregados, as péssimas condições de trabalho geral e essas verdadeiras “multidões de frustrados” que carregam consigo o peso da expectativa de gerações inteiras.

Tudo parecia perfeito, mas, aparentemente, miramos na bonança que chega após a tempestade e acertamos no silêncio que precede o caos. Após o período de grandes mudanças, as coisas começaram a degringolar rapidamente – e há um sentido nisso, sobre o qual poderemos falar em breve. A insatisfação e a (negação do sentimento de) culpa vestiram as roupas da indignação, da intolerância e do ódio.

Sugestão de leitura:

BAUMAN, Zygmunt. Sobre educação e juventude: convesas com Ricardo Mazzeo. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. Link para adquirir: https://amzn.to/3XfW6ns

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/3jEGrAm

BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2022. Link para adquirir: https://amzn.to/3JVjh3g

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

 

Covid-19 e a criminalização do Carnaval

Há 70 anos, minha família materna deixou o nordeste e se instalou em Nilópolis, ao lado da Beija-Flor. Sempre ouço suas histórias e vejo seu poder de mobilização com a comunidade. Apesar dos problemas decorrentes, a escola é o maior motivo de orgulho e identidade do nilopolitano.

Também sou neto de uma baiana e velha guarda da Beija-Flor de Nilópolis. Ainda criança, via o trabalho da Vó Geralda começar no outono e então ansiava até o dia em que enfim a veria na TV. Esse era o meu modo de conexão com minha avó paterna, sempre presente, apesar da distância.

Todo ano eu assistia o maior show da Terra varar noite e madrugada por dois dias pra depois desaparecer e recomeçar do zero. O carnaval me ensinou cedo sobre os modos de reinvenção da vida, esse saber tão próprio da periferia e de suas ancestralidades. Somos vários, nunca sós.

Quando soube do recente cancelamento do carnaval, logo me lembrei dela. O samba foi sua razão de vida e foi no samba que ela se foi. Após uma apresentação da velha guarda pelo interior de Minas Gerais, regada a muito samba e a cervejinha que tanto gostava, Dona Geralda descansou.

A vó não viu o governo anticarnaval de Crivella e a pandemia afetarem drasticamente toda a cadeia produtiva do carnaval. Também não viu o cancelamento do carnaval de rua e a ameaça que assombra os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e na Intendente Magalhães.

Muito além dos furdunços pelas zonas abastadas do Rio, há tempos os blocos de bairro, festas de rua e escolas de samba sofrem ataques. Agora, conservadores e racistas se unem aos progressistas elitizados pela total restrição da festa majoritariamente negra, pobre e periférica.

É evidentemente injusto cancelar um carnaval distante, semanas antes, enquanto festas, shows, cultos, eventos esportivos e toda sorte de aglomeração ocorrem neste momento em espaços privados, sob uma nova onda de Covid-19. Não seriam essas as ameaças que demandam restrição agora?

O novo surto foi agravado pelo réveillon e suas festas privadas, inclusive em locais fechados e sem ventilação, que continuam sem qualquer impedimento ou fiscalização. Isso só escancara a desigualdade, a elitização e a criminalização que tanto tentam impor contra as periferias.

Na contramão disso, as festas e demais expressões populares de rua são canceladas com urgência e antecedência sem precedentes: 55 dias. Logo, fica a suspeita sobre o que de fato define quem pode ou não pode curtir, se é mesmo o cuidado ou o poder econômico, o status e a grana.

Certa vez, para contrapor a influência do financiamento privado das campanhas eleitorais na política do Rio, um camarada que muito admiro disse que “quem paga a banda, escolhe a música”. Eu concordo. Hoje quem paga a banda só aceita dividir o samba com quem comprou ingresso.

E como ficarão os camelôs, os trabalhadores informais, os pequenos blocos e demais trabalhadores do carnaval pelos subúrbios e periferias? Não é possível impor a essas pessoas mais um ano sem trabalho e renda, principalmente diante da maior crise econômica da história do Rio.

Em primeiro lugar, precisamos de uma política de enfrentamento à pandemia que seja efetiva, democrática e garanta tratamento justo e igualitário para todas as pessoas, respeitando suas diferenças e especificidades. Os protocolos de cuidado devem valer para todos, sem distinção.

Os governos municipais e estadual junto à iniciativa privada ligada ao carnaval também devem compor e garantir políticas de auxílio, apoio e fomento a todos os trabalhadores que ficarão sem trabalho, renda e encantamento pelas ruas da capital, da Baixada e do Leste Metropolitano.

Tais medidas podem abrir caminho para a retomada econômica de um estado que perdeu cerca de 800 mil empregos e possui 1,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Ante os R$ 14 bilhões da venda da Cedae, é o mínimo que se pode esperar dos prefeitos e do governador Cláudio Castro.

O samba é inaugural. Quando ouve o batuque pela primeira vez, a criança estranha, mas logo se envolve e dança. Quando empunha um galho e o toca no chão, já apreende sua língua. Ao tomar o lápis entre os dedos, risca e cria.

Se só os ricos podem dançar, não é meu carnaval.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Com contribuições do jornalista William Faria.