Miscelânea

Caminhos do parecer para o ser

Assisti a uma entrevista interessantíssima do Charla Podcast com o zagueiro Wallace, que jogou no Flamengo entre 2013 e 2016. Em ótima fase, Wallace se tornou conhecido na mídia por ser um jogador inteligente, interessado pela leitura e pelos estudos, algo distante do estereótipo popularmente consolidado para a figura de um zagueiro, comumente atrelada à força e à superioridade física. Esta, aliás, é ainda uma característica comum no mundo dos esportes, principalmente quando falamos de futebol. Porém, quando Wallace passou a ser questionado dentro de campo, acabou publicamente estigmatizado por este contraste tão próprio da divisão social do trabalho, o que em parte evidencia os distintos valores que damos para as atividades intelectuais e as atividades físicas ou braçais na nossa sociedade.

Diferente do que imaginei, essa conversa não foi para um caminho sobre o sucesso ou o fracasso, sobre a superação ou a depressão. Não, Wallace abordou como determinadas imagens e, mais especificamente, personalidades introspectivas tendem a ter suas habilidades questionadas diante de um mundo que cultua padrões e características próprias da extroversão.

É óbvio que adotamos o resultado como parâmetro fundamental para a avaliação, seja numa prova da escola ou numa partida esportiva. Porém, quando pensamos em alguém vitorioso ou de sucesso, não limitamos nossa percepção ao aspecto do resultado, mas também atrelamos uma imagem, um temperamento e uma personalidade à aparência dessa figura. Neste aspecto, alguém bonito, simpático, que se comunica bem e tem facilidade de socializar leva vantagem na avaliação, ainda que possa ter resultados semelhantes a alguém que não possui tais características.

Não por acaso, são valorizadas características típicas da masculinidade, o que agrava as sensibilidades reprimidas de homens e mulheres nos espaços corporativos, esportivos e políticos, por exemplo, onde acabam excluídas habilidades e nuances importantes para um bom trabalho. Esse é só um exemplo do quão comum é credenciarmos mais chances de aceitação e sucesso ao extrovertido do que ao introvertido, acreditamos mais em quem está nos padrões do que em quem foge deles.

Na sabedoria popular, há um ditado que diz que “não basta você ter dinheiro, você precisa parecer que tem dinheiro”. Este é um valor evidenciado em boa parte das nossas interações mediadas pelas redes sociais, mas não se limita a elas. Há uma estética positiva que não se resume a roupas, paisagens, sorrisos e ideais de perfeição. Essa mesma positividade exige de nossas interações cotidianas relações que não dêem brecha para emoções, sentimentos e vulnerabilidades, principalmente quando há tanto para fazer, apreciar e mostrar resultados – ou, na linguagem das redes sociais, precisamos produzir, curtir e compartilhar ao máximo.

Se você leu esse texto até aqui, tenho certeza de que já viu ou vivenciou você mesma ou você mesmo algo do tipo. Por isso, acredito ser uma responsabilidade coletiva, isto é, de cada um e cada uma, a tarefa de nos conhecermos muito bem e rompermos com o espelho do que esperam de nós. Me refiro ao espelho, porque esperam de todos o mesmo, esperam que nos adequemos aos valores e à imagem da nossa sociedade acriticamente, transformando esta vida no que o filósofo Byung-Chul Han chama de “inferno do igual”.

Não se engane, você e eu também esperamos. É disso que se trata, nós também queremos ter sucesso, alcançar a felicidade e vencer na vida, nós também esperamos demais inclusive de nós mesmos. Hoje, eu acredito que, por meio do pleno conhecimento de nós mesmos, nós podemos por fim deixar de parecer para ser.

 

Parecer,
perecer
para ser.

 

Rennan Cantuária é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.

Sucesso?

Como bem diz Aílton Krenak, “a vida não é útil”. Vida é viver a jornada, é ser no mundo com tudo o que há no mundo. Lembrar que não estamos sós nesse desafio de viver é o primeiro passo para nos apropriarmos da empatia. Devemos adotar a empatia como um olhar amoroso para consigo e para o outro, como uma ferramenta de enfrentamento às diversas crises do nosso tempo.

Ora, nada disso se trata de ser “alguém” ou não, de ser útil ou não. Você não deixa de ser importante por não se encaixar sob determinada lógica ou valor, você não se torna descartável por não se sentir pertencente a um lugar, uma prática ou um grupo. Esses são valores hegemônicos que o mercado, a imprensa, as redes sociais e outras instituições insistem em reforçar; e que nós teimamos em reproduzir.

É importante compreendermos que os ditos valores do sucesso, do “ser alguém na vida”, são comumente pautados por comparação, competição, produtividade, consumo, preço  e, fundamentalmente, pelo lucro, características próprias das relações de produção e consumo, isto é, do capitalismo.

Com o avanço do neoliberalismo, nos distanciamos de valores sensíveis e consolidamos valores de mercado na nossa sociedade, processo muito bem representado nas recentes transformações das relações de trabalho, na qual deixamos de ser pessoas físicas para nos tornarmos pessoas jurídicas. Quando deixamos de ser pessoas trabalhadoras para nos tornarmos empresas, tomamos como referência e nos apropriamos dos valores empresariais e de mercado.

Os valores neoliberais se opõem à prática sensível de empatia e colocam em crise o próprio processo de alteridade. Num mundo cada vez mais atravessado pelo narcisismo e pela solidão, a alienação é agravada e nós já não conseguimos reconhecer algozes ou culpados. Já não é preciso que alguém fiscalize nossas inadequações e nos puna. Patrões de nós mesmos, frente ao espelho, somos nós os responsáveis por isso.

Aqui se inscreve a atualidade das palavras de Rosa Luxemburgo, que defendeu a construção de “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”. Construir uma visão crítica desta realidade, constituída pelo reconhecimento de outros valores e outras concepções de mundo possíveis, é, por si só, uma prática de empatia, alteridade e amor.

Rennan Cantuária é cientista social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.