A política não é apenas lógica e a razão por que não

Há uma dimensão da vida que a política – e a ciência política – ainda resiste a abordar, mesmo que seja evidente a urgência da sua inclusão e investigação. Afinal, como compreender os fenômenos das fake news, do negacionismo, do bolsonarismo e dos fascismos, da normalização da intolerância, do ódio e da barbárie, ou mesmo entender a ordenação de forças que culminaram nas recentes investidas de golpe contra a democracia no Brasil, sem considerar a conformação de emoções, crenças, consciências e realidades outras, fundadas em princípios que não se encontram plenamente sob o estatuto da verdade e os princípios da racionalidade?

Perante tamanho esgarçamento das relações políticas e sociais no Brasil, pode alguém explicar tudo o que aconteceu por aqui apenas com um pensamento lógico, sem decair ele mesmo em uma perspectiva de relativismo ou de teoria da conspiração?

No início do ano, tive a oportunidade de visitar a Feira Literária de Paraty e conferir uma roda de conversa da FLIPEI intitulada “Sonhos de uma outra terra indígena”. No debate, o neurocientista Sidarta Ribeiro reforçou a necessidade de nos dedicarmos a estudar os sonhos e outras conformações de realidade que estão fora da concepção cartesiana da verdade. Ouvi-lo me remeteu a uma ideia muito presente na militância política há alguns anos, a perspectiva indígena zapatista de luta “por um mundo onde caibam muitos mundos”.

Por coincidência (ou encanto), esse encontro resgatou e ampliou algumas reflexões que já haviam cruzado meu caminho nos anos anteriores, como alguns textos de Luiz Antonio Simas e de Christian Dunker; e, mais recentemente, quase que de maneira contínua, algumas contribuições de Darcy Ribeiro, Elizabeth Gilbert, Jean-Paul Sartre e Murilo Gun. De alguma maneira, todos eles me proporcionaram tropeços, essas trombadas involuntárias que desnorteiam o corpo entre o chão e o espaço, decorrentes de suas intervenções e obras.

Mas o que um neurocientista, um historiador, um psicanalista, um cientista social, uma romancista, um filósofo e um ex-comediante palestrante poderiam ter em comum? De modo peculiar e diverso, conforme suas respectivas áreas de atuação, suas intervenções atravessam, reforçam e aprofundam reflexões sobre dimensões mágicas do mundo.

Algumas experiências simples demonstram, na prática, os limites que estão  postos à maioria das análises difundidas por aí. Em seu Esboço para uma teoria das emoções, Sartre justifica com exemplos sua investigação. Imagine que você está lendo esse texto em sua casa, quando repentinamente um rosto desfigurado, colado ao vidro, surge em sua janela. Mesmo ciente da barreira física que é a janela, da barreira espacial que é a distância que existe entre vocês ou mesmo sem saber ao certo de quem se trata, o horror tem essa capacidade de anular a razão e lhe criar um mundo mágico, onde a ameaça passa a ser sua principal característica. Tal como num sonho ou na loucura, onde as barreiras físicas e espaciais podem parecer não resistir às ameaças do algoz, perante a nossa incapacidade de lidar com o objeto que nos gera a emoção do horror, a consciência desfaz o mundo ordenado e impõe um mundo mágico, que também pode aparecer transformado “sem intermediário e por grandes massas”. Em resumo, segundo Sartre, nossa consciência pode operar de duas maneiras diferentes, isto é, sob o regime da razão e do encantamento.

De modo semelhante, mas em oposição ao horror, o historiador Luiz Antonio Simas defende que nós, enquanto povo, não criamos modos de vivenciar a alegria porque a vida é boa, mas justamente para afastar os perrengues vividos. Não por acaso, sempre relembra Beto Sem-Braço, ao repetir que “o que afasta miséria é festa”. Em suas obras, Simas aborda as culturas de fresta que, “pelas síncopes da festa, inventam o mundo e subvertem a miséria, inclusive a existencial”. Esse é um sentido fundamental para a compreensão do carnaval, por exemplo. Cada um a seu modo, Sartre e Simas defendem que o próprio sujeito se determina, ele se inventa enquanto atua no mundo e, assim, recria seus mundos também.

Hoje, tendo a crer que a pergunta necessária é anterior àquelas que fiz, baseada não no mero apontamento do outro, mas na crítica tanto à ciência política quanto a nossa prática de cada dia. Por que a (ciência) política insiste na hegemonia da razão cartesiana se é, ela mesma, causa e resultado de importantes tensionamentos com a razão cientificista? Os parâmetros da lógica não dão conta das especificidades vividas na realidade concreta das coisas. Mas, com sorte, a essa altura, já é carnaval.

Sugestão de leitura:

SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/3IxTdKE

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, LUIZ. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020. Link para adquirir: https://amzn.to/3lK2eHu

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/40ZX8aa

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.