Pós-verdade

Defender a ciência e enfrentar suas contradições

É evidente que, diante do negacionismo em plena pandemia, das fake news em tempos de pós-verdade, todos nos dedicamos à luta em defesa da ciência. Um posicionamento mais que justo, por assim dizer, mas que esconde algumas contradições.

Olhando para os dias de hoje, não parece, mas os últimos séculos foram tempos de grandes transformações sociais. As Revoluções Científica e Industrial modificaram radicalmente o modo como a sociedade ocidental se estruturava e se organizava – no tempo, no espaço e na vida.

Descobrimos que a água não formava, junto à terra, o fogo e o ar, os quatro elementos fundamentais do planeta; mas que ela é composta por dois átomos de hidrogênio ligados a um átomo de oxigênio. Os dias deixaram de ser popularmente medidos pelas fases do sol, da lua e das estações do ano, dando lugar uma minuciosa divisão em horas trabalhadas, medindo fundamentalmente a quantidade de bens produzidos. As pessoas abandonaram a pacata e dura vida de lavoura no interior e ocuparam as grandes cidades em busca de algum trabalho remunerado, sob as condições mais degradantes, diante das maravilhas tecnológicas das fábricas que ali surgiam.

A sociedade agora se dividia em duas classes fundamentais, trabalhadores e detentores dos meios de produção, tomando para si os valores de compra em detrimento dos valores sensíveis, superestimando o ter perante o ser. Essas foram algumas das transformações a que o mundo fora apresentado e, agora, precisava lidar com suas trágicas consequências, como a profunda desigualdade, a superexploração da força de trabalho de homens, mulheres e crianças, a pobreza extrema, os males à saúde e a baixa expectativa de vida geral, a alta densidade demográfica dos centros urbanos e todos os demais problemas decorrentes deste novo e impositivo estilo de vida. Aquilo que começara na Europa, logo foi exportado para as periferias do mundo, atropelando suas especificidades e agravando suas desigualdades e exclusões.

As ciências sociais – fundamentalmente, a sociologia, a antropologia e a ciência política – surgem justamente neste cenário, tensionadas pelos métodos das ciências naturais e sob a nada simples responsabilidade de examinar e apontar caminhos para a solução dos problemas sociais que se multiplicavam a cada dia, perante o nascimento daquilo que hoje conhecemos como capitalismo. Elas nascem fortemente influenciadas pela teoria filosófica e científica do positivismo, quase dois séculos depois do surgimento do pensamento cartesiano, porém, mais de dois séculos antes de 2023.

Foi para adentrar ao mundo da ciência mesma, este das ditas ciências naturais, calcadas na metafísica aristotélica, tomadas por conceitos e valores que ainda habitam nosso imaginário na forma de jalecos brancos, cálculos matemáticos e experimentos químicos, que podemos compreender a resistência das ciências humanas e sociais – e, fundamentalmente, da ciência política – em romper com determinados parâmetros tradicionais da lógica, isto é, do racionalismo cartesiano.

Ainda no século XVII, ao separar a relatividade cultural, histórica e temporal da subjetividade dos sujeitos e reinventar a verdade por meio da razão, René Descartes impôs a exclusão do sonho e da loucura como regra para o pleno exercício da razão e, consequentemente, para a compreensão do que tomamos como verdade. Por isso, o psicanalista Christian Dunker identifica como marco fundamental da modernidade justamente a de-limitação por Descartes do que conceituamos como razão, com base na evidência material e na certeza psicológica; e subjetividade, “uma substância que pensa algo, mas não age conforme o que pensa”.

Quase 400 anos depois do pensamento cartesiano, a pós-modernidade ganha força na academia e em demais espaços na sociedade, recuperando certa politização entre as ciências humanas. Os estudos de gênero, os estudos culturais, as teorias pós-coloniais, o pós-marxismo e o pós-estruturalismo e a psicanálise de inspiração crítica ganham evidência e impõem uma maior reflexão sobre como nossas relações e nossos pequenos hábitos cotidianos reproduzem e atualizam relações de poder nos mais diversos âmbitos da vida.

Para Christian Dunker, o pós-modernismo aponta caminhos para a transformação de cada uma dessas relações de poder presentes no cotidiano, “um caminho real e acessível para que inventemos outros mundos e para que nos sintamos parte da diferença”, isto é, para que a diferença não seja mais social, cultural e historicamente imposta, jamais coercitiva, mas conformada por uma diferença construída.

Não por acaso, ainda hoje, não calculamos os prejuízos dos confrontos de juízo de valor entre métodos quantitativos e métodos qualitativos, apesar de todas as interações possíveis que podem proporcionar entre si, principalmente no âmbito das políticas públicas. Essa força que se impõe à relação entre ciências ditas exatas e humanas – como se os nomes apagassem a origem humana comum enquanto destacam quem detém os melhores parâmetros de confiabilidade – traz consigo o peso da disputa pelo lugar de autoridade na definição das verdades universais: ontem, a igreja; hoje, a ciência; amanhã, não se sabe.

A ciência tem uma relação conflituosa com a verdade. O filósofo brasileiro Clóvis de Barros Filho, famoso por seu trabalho de divulgação científica, costuma dizer que a ciência é um esforço para encontrar defeitos na ciência anterior. Para ele, “a ciência não é feita de verdade, a ciência é feita de falseabilidade, o cientista é aquele que trabalha para apontar o dedo e denunciar o erro do anterior”. Falseabilidade aqui significa refutabilidade, a condição de uma ideia, teoria ou hipótese de ser provada como falsa. O confronto entre ciência e verdade reaviva a disputa entre a concepção de mundo de Heráclito (540 a.C.), que toma a não estabilidade, o movimento e a transformação como características fundamentais do ser; e a ideia predominante de Parmênides (530 a.C.), que defendia a essência imutável do ser.

De alguma forma, a busca pelo lugar da verdade universal se encontra justamente no mundo fantástico, no campo do desejo de dominação e controle, no âmbito das próprias subjetividades. Não por acaso, cresce o resgate do método dialético que, por meio do diálogo, sugere a contradição e contraposição como caminho para conceber novos modos de existência, mundos, ideias e realidades. Com sorte, o abandono do poder decorrente das nossas certezas e verdades pode ser o principal desafio do nosso tempo.

Sugestão de leitura:

ARON, Raymond. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008. Link para adquirir: https://amzn.to/3Jli3xt

DESCARTES, René. Discurso do método e ensaios. São Paulo: Editora Unesp, 2018. Link para adquirir: https://amzn.to/3mx6n1P

DUNKER, Christian. Subjetividade em tempos de pós-verdade. In: _______ et all. Ética e Pós-Verdade. Porto Alegre: Dublinense, 2017. Link para adquirir: https://amzn.to/3SXJ1yv

RUFINO, Luiz; SIMAS, Luiz Antonio. Fogo no Mato: A ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/41PKFGu

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

A política não é apenas lógica e a razão por que não

Há uma dimensão da vida que a política – e a ciência política – ainda resiste a abordar, mesmo que seja evidente a urgência da sua inclusão e investigação. Afinal, como compreender os fenômenos das fake news, do negacionismo, do bolsonarismo e dos fascismos, da normalização da intolerância, do ódio e da barbárie, ou mesmo entender a ordenação de forças que culminaram nas recentes investidas de golpe contra a democracia no Brasil, sem considerar a conformação de emoções, crenças, consciências e realidades outras, fundadas em princípios que não se encontram plenamente sob o estatuto da verdade e os princípios da racionalidade?

Perante tamanho esgarçamento das relações políticas e sociais no Brasil, pode alguém explicar tudo o que aconteceu por aqui apenas com um pensamento lógico, sem decair ele mesmo em uma perspectiva de relativismo ou de teoria da conspiração?

No início do ano, tive a oportunidade de visitar a Feira Literária de Paraty e conferir uma roda de conversa da FLIPEI intitulada “Sonhos de uma outra terra indígena”. No debate, o neurocientista Sidarta Ribeiro reforçou a necessidade de nos dedicarmos a estudar os sonhos e outras conformações de realidade que estão fora da concepção cartesiana da verdade. Ouvi-lo me remeteu a uma ideia muito presente na militância política há alguns anos, a perspectiva indígena zapatista de luta “por um mundo onde caibam muitos mundos”.

Por coincidência (ou encanto), esse encontro resgatou e ampliou algumas reflexões que já haviam cruzado meu caminho nos anos anteriores, como alguns textos de Luiz Antonio Simas e de Christian Dunker; e, mais recentemente, quase que de maneira contínua, algumas contribuições de Darcy Ribeiro, Elizabeth Gilbert, Jean-Paul Sartre e Murilo Gun. De alguma maneira, todos eles me proporcionaram tropeços, essas trombadas involuntárias que desnorteiam o corpo entre o chão e o espaço, decorrentes de suas intervenções e obras.

Mas o que um neurocientista, um historiador, um psicanalista, um cientista social, uma romancista, um filósofo e um ex-comediante palestrante poderiam ter em comum? De modo peculiar e diverso, conforme suas respectivas áreas de atuação, suas intervenções atravessam, reforçam e aprofundam reflexões sobre dimensões mágicas do mundo.

Algumas experiências simples demonstram, na prática, os limites que estão  postos à maioria das análises difundidas por aí. Em seu Esboço para uma teoria das emoções, Sartre justifica com exemplos sua investigação. Imagine que você está lendo esse texto em sua casa, quando repentinamente um rosto desfigurado, colado ao vidro, surge em sua janela. Mesmo ciente da barreira física que é a janela, da barreira espacial que é a distância que existe entre vocês ou mesmo sem saber ao certo de quem se trata, o horror tem essa capacidade de anular a razão e lhe criar um mundo mágico, onde a ameaça passa a ser sua principal característica. Tal como num sonho ou na loucura, onde as barreiras físicas e espaciais podem parecer não resistir às ameaças do algoz, perante a nossa incapacidade de lidar com o objeto que nos gera a emoção do horror, a consciência desfaz o mundo ordenado e impõe um mundo mágico, que também pode aparecer transformado “sem intermediário e por grandes massas”. Em resumo, segundo Sartre, nossa consciência pode operar de duas maneiras diferentes, isto é, sob o regime da razão e do encantamento.

De modo semelhante, mas em oposição ao horror, o historiador Luiz Antonio Simas defende que nós, enquanto povo, não criamos modos de vivenciar a alegria porque a vida é boa, mas justamente para afastar os perrengues vividos. Não por acaso, sempre relembra Beto Sem-Braço, ao repetir que “o que afasta miséria é festa”. Em suas obras, Simas aborda as culturas de fresta que, “pelas síncopes da festa, inventam o mundo e subvertem a miséria, inclusive a existencial”. Esse é um sentido fundamental para a compreensão do carnaval, por exemplo. Cada um a seu modo, Sartre e Simas defendem que o próprio sujeito se determina, ele se inventa enquanto atua no mundo e, assim, recria seus mundos também.

Hoje, tendo a crer que a pergunta necessária é anterior àquelas que fiz, baseada não no mero apontamento do outro, mas na crítica tanto à ciência política quanto a nossa prática de cada dia. Por que a (ciência) política insiste na hegemonia da razão cartesiana se é, ela mesma, causa e resultado de importantes tensionamentos com a razão cientificista? Os parâmetros da lógica não dão conta das especificidades vividas na realidade concreta das coisas. Mas, com sorte, a essa altura, já é carnaval.

Sugestão de leitura:

SIMAS, Luiz Antonio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019. Link para adquirir: https://amzn.to/3IxTdKE

SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, LUIZ. Encantamento: sobre política de vida. Rio de Janeiro: Mórula, 2020. Link para adquirir: https://amzn.to/3lK2eHu

SARTRE, Jean-Paul. Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre: L&PM, 2021. Link para adquirir: https://amzn.to/40ZX8aa

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Um Brasil de mortos-vivos

Se você não se arrependeu agora, se você continua a negar a verdade e o projeto de morte em curso no Brasil, esteja consciente de que não lhe há caminho dentro da humanidade. Você morreu em vida e, infelizmente, ainda convivemos com você.

Lidar com a sua putrefação é muito difícil. Em Manaus, são 60 bebês sem oxigênio, além dos 200 mil brasileiros mortos, enquanto Bolsonaro e Pazuello menosprezam a pandemia, criticam o distanciamento social, ofendem nossos mortos, negam a vacina, empurram cloroquina, outras mentiras e insanidades.

Você que as reproduz irresponsavelmente não é criança – uma daquelas crianças jamais o faria. Você vaga como quem morreu em espírito, enquanto o corpo dissemina a voz e o cheiro da morte por aí. E as pessoas à sua volta vão morrendo em corpo ou em espírito de fato. Você também tem culpa.

No fim das contas, não se trata de incompetência ou ignorância, mas sim o extremo oposto: é o assassinato eficaz e o genocídio eficiente de alguém cuja especialidade é matar. Por isso, o impeachment é pouco, Bolsonaro precisa ser responsabilizado por seus crimes contra a humanidade. Este entra para a história como aquilo que o mundo sempre temerá, como aquilo que jamais pretenderá repetir.

Charge da Larte Coutinho (@LarteCoutinho1)

Nós, brasileiros – hoje alvos de vergonha e traumas para muitas décadas por vir –, seremos eternamente questionados pelo mundo sobre como, como permitimos que Bolsonaro e seus ceifeiros comandassem nosso país após tantas atrocidades. Será passado, mas não tanto, como sempre.

Você, tão logo que possa, vai dizer que nunca apoiou, mas que nada disso existiu, que não foi tudo isso que os textos relatam, que só morreu quem quis ou mereceu. Já vimos essas coisas num passado não tão distante, perante outras covas comuns com centenas de mortos.

Apesar de todos os esforços e restrições, perdi dois familiares para esta doença maldita. Foram dois entre os duzentos mil mortos no Brasil, dois entre os dois milhões de vidas perdidas no mundo ou ainda 0.0001% de todos os corpos amontoados em decorrência do Covid-19. Para além do luto que dói, a inconsequência é o que mais ofende, o negacionismo é o que mais agride, o sorriso irônico é o que mais revolta.

Talvez todo morto-vivo devesse ocupar aquela cadeira em Haia também, mas sei que isso não será possível. Você terá o direito ao esquecimento e até ao perdão do tempo. Mas eu não perdoo e tampouco esqueço. Pra mim sempre será tudo isso, muito pior do que está escrito toda vez que tocar as cicatrizes.

Torço para que as mortes cessem o quanto antes, é evidente. Contudo, torço pela vida tanto quanto almejo assistir a derrocada de cada um, nome por nome, troço por troço, para que possamos seguir perante os escombros que deixam, quem sabe esperançosos de que ainda há algum senso de justiça no mundo. O encanto, não sei.

Para os mortos-vivos que praticam orgulhosos todas as suas atrocidades, já não creio  na ressurreição depois de tudo. Quem sabe a memória possa superar tamanha indignação, quem sabe exista o perdão que já não tenho e que não merecem? Não aqui, não de mim. Uma parte minha igualmente morreu.

Hoje eu só quero que tudo passe e que vocês também.


Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.