Um Brasil de mortos-vivos

Se você não se arrependeu agora, se você continua a negar a verdade e o projeto de morte em curso no Brasil, esteja consciente de que não lhe há caminho dentro da humanidade. Você morreu em vida e, infelizmente, ainda convivemos com você.

Lidar com a sua putrefação é muito difícil. Em Manaus, são 60 bebês sem oxigênio, além dos 200 mil brasileiros mortos, enquanto Bolsonaro e Pazuello menosprezam a pandemia, criticam o distanciamento social, ofendem nossos mortos, negam a vacina, empurram cloroquina, outras mentiras e insanidades.

Você que as reproduz irresponsavelmente não é criança – uma daquelas crianças jamais o faria. Você vaga como quem morreu em espírito, enquanto o corpo dissemina a voz e o cheiro da morte por aí. E as pessoas à sua volta vão morrendo em corpo ou em espírito de fato. Você também tem culpa.

No fim das contas, não se trata de incompetência ou ignorância, mas sim o extremo oposto: é o assassinato eficaz e o genocídio eficiente de alguém cuja especialidade é matar. Por isso, o impeachment é pouco, Bolsonaro precisa ser responsabilizado por seus crimes contra a humanidade. Este entra para a história como aquilo que o mundo sempre temerá, como aquilo que jamais pretenderá repetir.

Charge da Larte Coutinho (@LarteCoutinho1)

Nós, brasileiros – hoje alvos de vergonha e traumas para muitas décadas por vir –, seremos eternamente questionados pelo mundo sobre como, como permitimos que Bolsonaro e seus ceifeiros comandassem nosso país após tantas atrocidades. Será passado, mas não tanto, como sempre.

Você, tão logo que possa, vai dizer que nunca apoiou, mas que nada disso existiu, que não foi tudo isso que os textos relatam, que só morreu quem quis ou mereceu. Já vimos essas coisas num passado não tão distante, perante outras covas comuns com centenas de mortos.

Apesar de todos os esforços e restrições, perdi dois familiares para esta doença maldita. Foram dois entre os duzentos mil mortos no Brasil, dois entre os dois milhões de vidas perdidas no mundo ou ainda 0.0001% de todos os corpos amontoados em decorrência do Covid-19. Para além do luto que dói, a inconsequência é o que mais ofende, o negacionismo é o que mais agride, o sorriso irônico é o que mais revolta.

Talvez todo morto-vivo devesse ocupar aquela cadeira em Haia também, mas sei que isso não será possível. Você terá o direito ao esquecimento e até ao perdão do tempo. Mas eu não perdoo e tampouco esqueço. Pra mim sempre será tudo isso, muito pior do que está escrito toda vez que tocar as cicatrizes.

Torço para que as mortes cessem o quanto antes, é evidente. Contudo, torço pela vida tanto quanto almejo assistir a derrocada de cada um, nome por nome, troço por troço, para que possamos seguir perante os escombros que deixam, quem sabe esperançosos de que ainda há algum senso de justiça no mundo. O encanto, não sei.

Para os mortos-vivos que praticam orgulhosos todas as suas atrocidades, já não creio  na ressurreição depois de tudo. Quem sabe a memória possa superar tamanha indignação, quem sabe exista o perdão que já não tenho e que não merecem? Não aqui, não de mim. Uma parte minha igualmente morreu.

Hoje eu só quero que tudo passe e que vocês também.


Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.