Covid-19

Covid-19 e a criminalização do Carnaval

Há 70 anos, minha família materna deixou o nordeste e se instalou em Nilópolis, ao lado da Beija-Flor. Sempre ouço suas histórias e vejo seu poder de mobilização com a comunidade. Apesar dos problemas decorrentes, a escola é o maior motivo de orgulho e identidade do nilopolitano.

Também sou neto de uma baiana e velha guarda da Beija-Flor de Nilópolis. Ainda criança, via o trabalho da Vó Geralda começar no outono e então ansiava até o dia em que enfim a veria na TV. Esse era o meu modo de conexão com minha avó paterna, sempre presente, apesar da distância.

Todo ano eu assistia o maior show da Terra varar noite e madrugada por dois dias pra depois desaparecer e recomeçar do zero. O carnaval me ensinou cedo sobre os modos de reinvenção da vida, esse saber tão próprio da periferia e de suas ancestralidades. Somos vários, nunca sós.

Quando soube do recente cancelamento do carnaval, logo me lembrei dela. O samba foi sua razão de vida e foi no samba que ela se foi. Após uma apresentação da velha guarda pelo interior de Minas Gerais, regada a muito samba e a cervejinha que tanto gostava, Dona Geralda descansou.

A vó não viu o governo anticarnaval de Crivella e a pandemia afetarem drasticamente toda a cadeia produtiva do carnaval. Também não viu o cancelamento do carnaval de rua e a ameaça que assombra os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e na Intendente Magalhães.

Muito além dos furdunços pelas zonas abastadas do Rio, há tempos os blocos de bairro, festas de rua e escolas de samba sofrem ataques. Agora, conservadores e racistas se unem aos progressistas elitizados pela total restrição da festa majoritariamente negra, pobre e periférica.

É evidentemente injusto cancelar um carnaval distante, semanas antes, enquanto festas, shows, cultos, eventos esportivos e toda sorte de aglomeração ocorrem neste momento em espaços privados, sob uma nova onda de Covid-19. Não seriam essas as ameaças que demandam restrição agora?

O novo surto foi agravado pelo réveillon e suas festas privadas, inclusive em locais fechados e sem ventilação, que continuam sem qualquer impedimento ou fiscalização. Isso só escancara a desigualdade, a elitização e a criminalização que tanto tentam impor contra as periferias.

Na contramão disso, as festas e demais expressões populares de rua são canceladas com urgência e antecedência sem precedentes: 55 dias. Logo, fica a suspeita sobre o que de fato define quem pode ou não pode curtir, se é mesmo o cuidado ou o poder econômico, o status e a grana.

Certa vez, para contrapor a influência do financiamento privado das campanhas eleitorais na política do Rio, um camarada que muito admiro disse que “quem paga a banda, escolhe a música”. Eu concordo. Hoje quem paga a banda só aceita dividir o samba com quem comprou ingresso.

E como ficarão os camelôs, os trabalhadores informais, os pequenos blocos e demais trabalhadores do carnaval pelos subúrbios e periferias? Não é possível impor a essas pessoas mais um ano sem trabalho e renda, principalmente diante da maior crise econômica da história do Rio.

Em primeiro lugar, precisamos de uma política de enfrentamento à pandemia que seja efetiva, democrática e garanta tratamento justo e igualitário para todas as pessoas, respeitando suas diferenças e especificidades. Os protocolos de cuidado devem valer para todos, sem distinção.

Os governos municipais e estadual junto à iniciativa privada ligada ao carnaval também devem compor e garantir políticas de auxílio, apoio e fomento a todos os trabalhadores que ficarão sem trabalho, renda e encantamento pelas ruas da capital, da Baixada e do Leste Metropolitano.

Tais medidas podem abrir caminho para a retomada econômica de um estado que perdeu cerca de 800 mil empregos e possui 1,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Ante os R$ 14 bilhões da venda da Cedae, é o mínimo que se pode esperar dos prefeitos e do governador Cláudio Castro.

O samba é inaugural. Quando ouve o batuque pela primeira vez, a criança estranha, mas logo se envolve e dança. Quando empunha um galho e o toca no chão, já apreende sua língua. Ao tomar o lápis entre os dedos, risca e cria.

Se só os ricos podem dançar, não é meu carnaval.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Com contribuições do jornalista William Faria.

Um Brasil de mortos-vivos

Se você não se arrependeu agora, se você continua a negar a verdade e o projeto de morte em curso no Brasil, esteja consciente de que não lhe há caminho dentro da humanidade. Você morreu em vida e, infelizmente, ainda convivemos com você.

Lidar com a sua putrefação é muito difícil. Em Manaus, são 60 bebês sem oxigênio, além dos 200 mil brasileiros mortos, enquanto Bolsonaro e Pazuello menosprezam a pandemia, criticam o distanciamento social, ofendem nossos mortos, negam a vacina, empurram cloroquina, outras mentiras e insanidades.

Você que as reproduz irresponsavelmente não é criança – uma daquelas crianças jamais o faria. Você vaga como quem morreu em espírito, enquanto o corpo dissemina a voz e o cheiro da morte por aí. E as pessoas à sua volta vão morrendo em corpo ou em espírito de fato. Você também tem culpa.

No fim das contas, não se trata de incompetência ou ignorância, mas sim o extremo oposto: é o assassinato eficaz e o genocídio eficiente de alguém cuja especialidade é matar. Por isso, o impeachment é pouco, Bolsonaro precisa ser responsabilizado por seus crimes contra a humanidade. Este entra para a história como aquilo que o mundo sempre temerá, como aquilo que jamais pretenderá repetir.

Charge da Larte Coutinho (@LarteCoutinho1)

Nós, brasileiros – hoje alvos de vergonha e traumas para muitas décadas por vir –, seremos eternamente questionados pelo mundo sobre como, como permitimos que Bolsonaro e seus ceifeiros comandassem nosso país após tantas atrocidades. Será passado, mas não tanto, como sempre.

Você, tão logo que possa, vai dizer que nunca apoiou, mas que nada disso existiu, que não foi tudo isso que os textos relatam, que só morreu quem quis ou mereceu. Já vimos essas coisas num passado não tão distante, perante outras covas comuns com centenas de mortos.

Apesar de todos os esforços e restrições, perdi dois familiares para esta doença maldita. Foram dois entre os duzentos mil mortos no Brasil, dois entre os dois milhões de vidas perdidas no mundo ou ainda 0.0001% de todos os corpos amontoados em decorrência do Covid-19. Para além do luto que dói, a inconsequência é o que mais ofende, o negacionismo é o que mais agride, o sorriso irônico é o que mais revolta.

Talvez todo morto-vivo devesse ocupar aquela cadeira em Haia também, mas sei que isso não será possível. Você terá o direito ao esquecimento e até ao perdão do tempo. Mas eu não perdoo e tampouco esqueço. Pra mim sempre será tudo isso, muito pior do que está escrito toda vez que tocar as cicatrizes.

Torço para que as mortes cessem o quanto antes, é evidente. Contudo, torço pela vida tanto quanto almejo assistir a derrocada de cada um, nome por nome, troço por troço, para que possamos seguir perante os escombros que deixam, quem sabe esperançosos de que ainda há algum senso de justiça no mundo. O encanto, não sei.

Para os mortos-vivos que praticam orgulhosos todas as suas atrocidades, já não creio  na ressurreição depois de tudo. Quem sabe a memória possa superar tamanha indignação, quem sabe exista o perdão que já não tenho e que não merecem? Não aqui, não de mim. Uma parte minha igualmente morreu.

Hoje eu só quero que tudo passe e que vocês também.


Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.