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Histórias de Seu Cantuária

Na última semana, perdi um tio. Foi o sexto tio que faleceu em apenas dois anos. Depois de tantas perdas em um período tão curto e difícil para a vida, a gente aprende que a morte não traz apenas a dor e o luto, mas também muita burocracia. Foi vasculhando alguns papéis antigos da família que encontrei os documentos do Seu Cantuária.

Ao conferir os documentos, vi que Thomaz Cantuária nasceu em 29 de dezembro de 1909 na cidade de Cachoeira, terra de Caramuru, às margens do Rio Paraguaçu, na Bahia. Porém, há uma outra história que os papéis não contam, uma história que eu conheço e mal entendo como. Essa história é sabida a conta-gotas nas reuniões em família, nos ‘causos’ de minha avó Dedé, nas conversas com minhas tias e nas histórias de mãe. Surgem nos momentos mais despretensiosos, quando a memória se apresenta, afetuosamente trazida por algum pequeno evento do cotidiano, acompanhada dos saberes dos mais velhos. Essas lembranças vêm como quem acorda de um sono profundo com a leveza de quem regozija o descanso e logo se livra das cobertas, levanta com um sorriso no rosto, sai do quarto e elogia o cheiro de café que toma a casa inteira tal qual se diz bom dia. Mas, apesar do aroma, isso não faz da memória um comercial de margarina. Eu não conheci o Seu Cantuária, mas sinto que a nossa história, a história da minha família, é assim, feita em palavra contada, e é assim que conto essa história.

Thomaz nasceu em 1910. Ficou órfão de mãe muito cedo e logo seu pai também adoeceu. Diante da incerteza do destino, seu pai tomou a decisão que definiria o destino do menino de apenas doze anos: o entregou aos cuidados da Marinha do Brasil e o fez aprendiz-marinheiro. À época, a Marinha operava como uma espécie de abrigo para menores de idade, um lugar para “corrigir” os jovens ditos “problemáticos”, um centro de medidas socioeducativas que recolhia crianças e adolescentes, em sua maioria negros, pobres, muitas vezes órfãos – e Thomaz acumularia em breve as três categorias da exclusão.

Um mês antes de seu nascimento, a capital do Brasil estava sob a mira dos canhões dos novíssimos couraçados Minas Geraes e São Paulo, além de outros navios cruzadores. Liderada por João Cândido, o Almirante Negro, a rebelião agia contra os castigos corporais empregados por oficiais navais brancos para punir marinheiros negros na Marinha do Brasil. O evento ficou conhecido como A Revolta da Chibata. Pouco mais de 10 anos depois, as coisas não teriam mudado tanto na instituição.

Thomaz não queria ir. Aos doze anos, ele havia perdido a mãe recentemente, lidava com o adoecimento do pai e, agora, estava fadado ao completo afastamento da família. Ele sequer possuía a idade mínima estabelecida pelo regulamento da instituição. Na época, era comum que crianças fossem aceitas se cumprissem certos parâmetros de tamanho e força, independente da idade. Assim foi feito, com um adendo: sua data de nascimento foi alterada em um ano, mudando de 1910 para 1909. Para fins legais, Thomaz agora tinha 13 anos e era um aprendiz-marinheiro.

Seu Cantuária não falava muito dessas histórias, sobre suas origens, menos ainda sobre seus pais e sua família. Ele vivia sua carreira discretamente, não exaltava as Forças Armadas nem contava vantagem sobre sua carreira ou posto. Usava seu uniforme em raras ocasiões, apenas quando estritamente necessário. Gostava mesmo era de seu violão, de tirar chorinho de ouvido, dar suas canjas em casa com a família e, ocasionalmente, com visitantes ilustres, como Altamiro Carrilho e cia. Do mesmo modo com que o afeto por sua mãe permanecia vivaz e presente, também havia uma ferida escondida, mal cicatrizada, que lhe pesava latentemente e insistia em lembrá-lo do passado. Restava descontar suas dores nas cordas com seu choro em Mi menor, como quem nina suas memórias para que durmam profundamente e nada sinta mais. Mas não há lembrança que não precise espairecer.

Estas não foram as únicas durezas institucionais que presenciou. Nos anos 60, Seu Cantuária já seria oficial da Marinha e também trabalhava como radiotelegrafista numa antiga empresa de aviação, a Panair do Brasil. Pai de 12 filhos, ele trabalhava em turnos dobrados para fazer renda extra e conseguir pagar os estudos de seus caçulas. Foi assim que sua filha cursou o técnico em química e outro filho cursou a faculdade de matemática – este, antes de concluir a graduação, abandonou os estudos para ser lateral no América. Isso deixou Seu Cantuária muito irritado, mas não é essa a história que devo contar.

A Panair é lembrada com certo romantismo por se tratar de uma das empresas pioneiras da aviação nacional e por ser a representação da adesão brasileira à modernidade. Todavia, também é reconhecida por protagonizar um caso inédito da justiça brasileira: o único caso de decreto compulsório de falência, isto é, sem pedido do credor. Após o golpe civil-militar de 1964, a empresa foi fechada da noite para o dia. Hoje sabemos que seus proprietários foram perseguidos politicamente durante a ditadura, que a falência da empresa foi decretada mesmo sem motivos para isso e que seus concorrentes foram diretamente favorecidos pelo regime.

Eram tempos difíceis. Em teoria, a repressão se dava contra os “subversivos”, aqueles que criticavam ou lutavam contra a ditadura. Deste modo, a brutalidade do Estado tinha como objetivo a manutenção do poder nas mãos dos militares, sem que houvesse questionamentos ou riscos. Para o governo, a oposição aos interesses e valores do regime não podiam ter lugar. Mas, na prática, a perseguição era muito mais ampla, pois também decorria dos contatos e das relações que você construía: bastava conhecer a pessoa certa para a ocasião que lhe fosse conveniente. Uma disputa pessoal, um aborrecimento, ciúmes ou uma discussão qualquer, não importa. Se uma pessoa fosse denunciada às forças do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), ela era implacavelmente perseguida e passava pelos métodos mais degradantes e violentos para averiguação. Muitas pessoas foram denunciadas, perseguidas, torturadas e mortas por desagradar ou para beneficiar alguém, ao regime ou aos amigos do regime. Algumas pessoas nunca mais foram encontradas. As consequências foram brutais.

Nada disso se dava de modo evidente. Pouco foi noticiado nos jornais ou na televisão, pois havia censura e a mídia que restava só poderia apoiar o regime. Nas periferias, nos lugares esquecidos ainda hoje, a violência era e continua sendo ainda mais grave – na Baixada Fluminense, uma pessoa desapareceu a cada seis horas só em 2022. Não por acaso, todos nós, dos mais velhos aos mais novos, herdamos certo temor quanto ao falar sobre o que e quem nos aflige. Apesar do tempo, todos sabemos muito bem como uma denúncia pública pode desagradar a pessoa errada e acarretar em perseguição política ou em algo pior.

Agora, esse medo é propagado novamente na voz e na ação de muita gente que não compreende os riscos que a rispidez, o preconceito, a intolerância e o ódio podem impor a um país. A nossa indignação com uma realidade tão violenta não pode nos tornar espelho do que há de pior, mas sim em exemplo de superação ante todos. Não é possível construir um mundo mais respeitoso, empático e justo tomando a violência como caminho. A democracia é a proteção contra o autoritarismo, assim como a justiça é o remédio contra a barbárie. Por isso, a solução está justamente na coerência entre o que desejamos, dizemos e praticamos.

Há uma música famosa de Marcelo Yuka que diz que “paz sem voz não é paz, é medo“. Eu acredito muito nisso. O silêncio apartado da escuta de si e do outro é um forte sinal de violência. Se queremos um mundo melhor, precisamos ser melhores por inteiro também.

Ao se deparar com essas situações, as orientações de Seu Cantuária eram claras: “Arrume toda a família e saia de madrugada. Sem que pareça uma viagem e sem que ninguém os veja, leve apenas aquilo que possa carregar nas mãos”. Não se sabe ao certo quantas pessoas ele alertara. Pessoas que, por algum revés da vida, foram denunciadas e poderiam ter sido levadas para as câmaras de tortura da ditadura militar. Dos antigos vizinhos que ainda resistem à memória, minha família nunca mais soube, nunca mais foram vistos. Hoje, eles habitam na esperança de que o sumiço signifique a sobrevivência, mas há um medo velado que permanece e silencia o assunto desde então. Medo de que as pessoas erradas saibam da ajuda, medo do julgamento perante os apoiadores do regime. A ditadura passou, algumas pessoas seguiram tranquilas, mas seu silêncio se enquartela entre nós.

Antes dos anos de chumbo, lá pelo fim dos anos 40, Seu Cantuária veio do nordeste com a família e se instalou em Nilópolis, próximo ao final da Av. Mirandela. Naquele tempo, a Mirandela era uma estrada de barro onde as boiadas cruzavam cotidianamente em direção ao antigo matadouro. Todos os dias, centenas de trabalhadores também se deslocavam até o centro de Nilópolis para tomar a condução com destino ao Rio de Janeiro, capital do país. Quando chovia, tudo virava um grande lamaçal, o que tornava chegar ao ponto de ônibus ou à estação de trem sem se enlamear uma missão quase impossível. Os poucos ônibus que já serviam ao bairro não só atrasavam como passavam imundos de barro, tanto por dentro quanto por fora, o que causava grande sentimento de revolta nos moradores, principalmente durante o período de chuva.

Certa vez, em mais uma viagem de ônibus pela lama, houve um grande burburinho entre os passageiros. Indignado por nada ser feito, Seu Cantuária sugeriu que todos os vizinhos boicotassem a empresa até que a limpeza dos ônibus fosse feita. O discurso conquistou seus colegas de condução, que logo aderiram à medida proposta. No outro dia, empenhado em sua manifestação, Seu Cantuária guardou a farda na bolsa e vestiu uma roupa simples para a caminhada. Calçou suas humildes sandálias e as cobriu com sacos plásticos amarrados nas canelas para assim enfrentar o lamaçal até o centro de Nilópolis. Mesmo diante de um dilúvio, ele não daria um único centavo para o ônibus até que a empresa garantisse um serviço digno para os passageiros. Ao sair pela porta de casa e tomar o caminho do brejo, o ônibus cruza seu caminho, lotado de vizinhos com sorrisos amarelos e explicações embaraçadas.

É curioso pensar como essas histórias dizem tanto sobre minhas experiências no mundo – na família, na arte, na política e até no transporte público. Meu avô nasceu na Bahia, mas viveu até seus últimos dias em Nilópolis, na Baixada Fluminense. Eu não tive a oportunidade de conhecê-lo, mas tive a sorte de saber algumas de suas histórias. Assim, compreendo um pouco mais sobre a minha também. E, pelo cheiro que sinto aqui do quarto, o café está delicioso.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Mãos ao alto: R$ 7 é um assalto

Em 2013, ao escrever sobre o aumento das passagens em Nilópolis, cravei que a cidade possuía o quilômetro rodado mais caro do Brasil. Desde então, sempre que acordo e descubro um novo reajuste nas tarifas, me sinto como Bill Murray em Feitiço do Tempo e revejo o velho texto.

Há quase 10 anos, na esteira das mobilizações que tomaram as ruas por todo o país, nossa mobilização colocou milhares de pessoas nas ruas de Nilópolis, forçando o então prefeito Alessandro Calazans a voltar atrás. Sim, nós barramos o aumento das passagens dos ônibus municipais.

O contexto político e econômico agora é outro. Tal como o Brasil, o estado do RJ afundou numa crise sem precedentes. Perdemos 800 mil empregos só nos últimos 5 anos e, hoje, somos 1,5 milhão de desempregados e 2 milhões em situação de pobreza, todos sem perspectiva de mudança.

O que também não muda é o impacto de um transporte caro e precário sobre a vida das pessoas. Naturalizamos o movimento pendular ao trabalhar ou estudar longe de casa e voltar ao fim do dia. Essa bola de demolição é a exploração extra de quem vive nos subúrbios e nas periferias.

De acordo com o Mapa das Desigualdades produzido pela Casa Fluminense, cerca de 42% dos moradores de Nilópolis que possuem vida profissional ativa trabalham no Rio de Janeiro. Muitos estudantes e pessoas em busca de serviços diversos também se deslocam diariamente rumo à capital.

A forma mais barata de se chegar ao Rio ainda é pelos trens da SuperVia. Entretanto, a passagem que hoje já custa R$ 5 chegará aos R$ 7 a partir de fevereiro. Em muitos casos, ainda é preciso tomar mais um ônibus ou o metrô, cuja tarifa por meio do Bilhete Único totaliza R$ 8,55.

Assim, se esse morador de Nilópolis for 5 dias por semana ao Rio, seu custo mensal é de pelo menos R$ 342, podendo chegar à marca anual de R$ 4.446. Isto é, o estudante, trabalhador e/ou empregador precisa arcar com mais de 4 salários-mínimos apenas para despesas de deslocamento.

Nilópolis, 1975 / Jornal do Brasil

E se, por acaso, esse mesmo nilopolitano ainda carecer de um ônibus municipal para chegar à estação de trem, a conta pode chegar a incríveis R$ 25,00 por dia ou R$ 500,00 por mês. São R$ 6.500,00 por ano, sem incluir alimentação e outros gastos essenciais. Dá mesmo pra se viver?

Com o aumento das tarifas, agrava-se também a dificuldade de contratação de quem mora nos subúrbios e periferias. Devido ao alto custo de seu deslocamento, as raras e já muito concorridas vagas de emprego sempre serão destinadas àqueles que demandam um menor custo ao empregador.

Por isso, não é incomum vermos trabalhadores arcarem com o valor parcial ou total de sua passagem, além dos 6% descontados de seu salário para o vale-transporte. Na atual conjuntura, muitos topam pagar para conseguir algum emprego, exemplo da brutal precarização da vida no Rio.

O transporte público, afinal, se tornou o principal custo diário dos trabalhadores nas metrópoles afora. No Rio, a ineficiência do serviço é acentuada pelas desigualdades e por seu histórico projeto de gentrificação — empregos em zonas nobres e distantes da maioria da população.

Neste cenário, fica evidente que qualquer reajuste é perverso e injusto. Para debater a questão com seriedade, é preciso democratizar o processo, com uma efetiva transparência nas contas das empresas do transporte público e ampla participação popular nas análises e nas decisões.

Mais do que isso, combater a crise no Rio é enfrentar seu projeto histórico de apartamento e apagamento do povo, dos centros para o subúrbio, Baixada e favelas. Só construiremos uma cidade mais justa, democrática e para as pessoas por meio de uma efetiva e popular Reforma Urbana.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.