racismo

Leitura: A América Latina existe?

Tenho conversado muito com Darcy. Na verdade, me impressiona seu caráter futurista, a frente não só do seu, mas do nosso tempo também. Talvez eu venha compensando minha abstemia e ausências no Bar do Binho com suas leituras. Leio Darcy como se conversássemos na mesa de um boteco e isso é ótimo.

Minha primeira leitura concluída em 2023 foi desse livreto aqui: A América Latina existe?, de Darcy Ribeiro. A obra compõe uma coleção de dez pequenos livros chamada Darcy no bolso. Com pouco mais de 100 páginas cada, nos quais seus pensamentos e relatos foram organizados como um diário.

No decorrer do ano, eu provavelmente compartilharei mais sobre ele com vocês. Quem sabe um mini-curso? Não sei, vamos ver se ele topa.

É evidente que há certa anacronia em meus julgamentos quando me deparo com alguns de seus relatos e hábitos que compartilha debochadamente, qual um homem vivido em meados do século XX com seu copo de cerveja na mão (imagino eu). Entretanto, sua abordagem de pautas que, ainda hoje, são tabus em setores das esquerdas ou mesmo do trabalhismo são surpreendentes.

Na obra, Darcy explica como o racismo e a violência destituíram os povos de suas identidades e culturas, tudo sob o interesse das classes dominantes – antes, pelo colonialismo escravocrata europeu; depois, pela exploração das corporações capitalistas. A compreensão do racismo é central para entender o Brasil e a América Latina.

Diante disso, Darcy acredita que, no futuro, os latino-americanos construam uma “entidade política supranacional” para que possam determinar suas próprias vidas e caminhos, com destaque para as nacionalidades indígenas ainda tão oprimidas. Para Darcy, a nacionalidade como conhecemos só faz sentido para aqueles que detêm algum nível de equidade, o que é inviável perante o racismo brutal que permanece.

Ideias como mecanismos políticos de auto-organização, participação e controle popular, meios de construção coletiva de outras realidades e de garantir boa vida ou mesmo a possibilidade de instituirmos estados plurinacionais frente ao capitalismo dependente das classes dominantes de toda a América Latina ainda são vistas com ressalvas pela maioria das esquerdas. Porém, elas habitavam encantadas na mente deste centenário senhor.

E, por falar em encantaria, ao denunciar a tentativa de doutrinação cristã sobre os povos da floresta e seu genocídio no Brasil, Darcy denuncia tais “infiéis” que corroboram com a invasão e destruição de terras indígenas. Atual, né?

Darcy defendeu um Povo Latino-Americano que um dia há de sarar as feridas abertas de seu passado para jamais repeti-los, um povo que há de valorizar suas potências enquanto herdeiro das sabedorias dos povos da floresta, do páramo, de África e dos mares do sul.

Debaixo do sol, o ar escaldante derretia ao encontrar a garrafa estupidamente gelada que suava sobre a mesa como quem peleja pelo Brasil que pode ser e há de ser. O líquido dourado cintilava sob o alvo colarinho que escorria sedutoramente pelo copo americano que, não por coincidência, é brasileiro. Brindamos.

Sugestão de leitura:

RIBEIRO, Darcy. A América Latina existe? Coleção Darcy no bolso, vol. 1. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB, 2010. Link para adquirir: https://amzn.to/3IYiJJi

________________. O Brasil como problema. Coleção Darcy no bolso, vol. 2. Rio de Janeiro: Fundação Darcy Ribeiro; Brasília: Editora UnB, 2010. Link para adquirir: https://amzn.to/3IVbIJh

________________. O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Global Editora, 2014. Link para adquirir: https://amzn.to/3Xpkow0

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

 

Quando conheci Mahatma Gandhi e Dr. King

Me lembro como se fosse hoje. Quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, ainda em Macaé, passei a ter minhas primeiras crises de enxaqueca. Fui ao médico, mas minha saúde estava perfeita, nada além de certa intolerância a corantes e conservantes. Como eu era muito tímido, orientada pelo médico, minha mãe me levou a uma psicóloga. Lembro que ela era muito carinhosa e me fez perguntas típicas que fazemos às crianças, como o que eu queria ser quando crescer, se eu gostava de desenhar e o que eu gostava de fazer.

Muito fã do Ayrton Senna, eu queria ser piloto de Fórmula 1. Também disse que preferia pintar a desenhar, pois me achava péssimo com desenhos – o que depois descobri que era só falta de prática. Mas eu gostava mesmo era de jogar bola, fazer guerra de mamona e brincar de pique no quintal de casa.

A psicóloga então me perguntou: se você encontrasse uma lâmpada mágica e o gênio da lâmpada lhe oferecesse o direito a 3 desejos, o que você pediria? Eu respondi que queria que todas as crianças também tivessem brinquedos; que o conflito no Peru acabasse (Governo Fujimori, né?); e que houvesse paz no mundo. Acabei constrangido com a reação dela, ao me questionar se eu não gostaria de nada pra mim. É evidente que eu queria uma baita coleção de Lego, uma camisa do Flamengo e uma bola nova, mas achava as outras coisas prioridades diante de um poder tão grande. Ela não pôde deixar de concordar, mas ainda me pego pensando no porque disse isso.

Macaé era uma cidade de pescadores e petroleiros, como se pode imaginar, detentora de uma desigualdade absurda. Meus vizinhos eram ou muito ricos ou muito pobres. Eu, filho de uma trabalhadora petroleira, técnica em química, não entendia por qual razão eu morava numa casa antiga e humilde ao pé do Morro do Carvão, enquanto alguns amigos viviam em barracos de madeira e sem banheiro no alto do morro ou na beira da linha do trem e outros habitavam casarões na rua de baixo. Éramos do mesmo bairro e eu brincava com todos, mas eles sequer se conheciam. Os recortes raciais e de classe eram óbvios e flagrei por diversas vezes sua violência. Esse conflito me incomodava muito e formou meu modo de enxergar o mundo.

Aos 13 anos, quando deixei o interior e cheguei à Baixada Fluminense, encarei outro tipo de desigualdade. Eram desigualdades e violências naturalizadas diante de outras estruturas e de oportunidades diferentes, tudo me pareceu ainda mais brutal. Ora, se realidades tão distintas possuíam desigualdades tamanhas, então havia algo maior por trás disso tudo.

Como também se pode imaginar, cursar Ciências Sociais foi meu modo de tentar entender, explicar e contribuir frente a desigualdade e as consequências do neoliberalismo que vi em Macaé e em Nilópolis. Antes desse passo, porém, duas figuras mudaram meu modo de ver e vivenciar isso tudo. Foi ao conhecer as histórias de Mohandas Karamchand Gandhi e de Martin Luther King Jr. que compreendi a possibilidade de conciliar saberes e práticas de quem se indigna mundo afora e aqui. Eu devia compreender as experiências outras e as nossas para enfim enfrentar o problema.

Conhecer a luta anticolonial, por autodeterminação dos povos e pelos direitos humanos foram determinantes para que eu criasse em 2011 o coletivo Nilópolis Debate, uma organização de viés horizontal, fundada em práticas democráticas e na participação popular. Manter minha vida e meu ativismo na Baixada Fluminense são atos políticos dos quais, apesar do preço e das ameaças contra minha vida, não me arrependo, pois me matam e me reavivam todos os dias. Assim aprendi.

Após 73 anos da passagem de Mahatma Gandhi e 53 de Dr. King, suas práticas políticas seguem influenciando gerações inteiras na luta contra as desigualdades e por justiça social. Somos pessoas conscientes de que o mundo que queremos construir não surgirá de uma única cabeça iluminada, caridosa, distante e solitária, pois esse mundo já existe, construído pelas mãos ásperas do trabalho resiliente, diário e coletivo nas periferias de todo o planeta. São elas que têm muito a ensinar.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Covid-19 e a criminalização do Carnaval

Há 70 anos, minha família materna deixou o nordeste e se instalou em Nilópolis, ao lado da Beija-Flor. Sempre ouço suas histórias e vejo seu poder de mobilização com a comunidade. Apesar dos problemas decorrentes, a escola é o maior motivo de orgulho e identidade do nilopolitano.

Também sou neto de uma baiana e velha guarda da Beija-Flor de Nilópolis. Ainda criança, via o trabalho da Vó Geralda começar no outono e então ansiava até o dia em que enfim a veria na TV. Esse era o meu modo de conexão com minha avó paterna, sempre presente, apesar da distância.

Todo ano eu assistia o maior show da Terra varar noite e madrugada por dois dias pra depois desaparecer e recomeçar do zero. O carnaval me ensinou cedo sobre os modos de reinvenção da vida, esse saber tão próprio da periferia e de suas ancestralidades. Somos vários, nunca sós.

Quando soube do recente cancelamento do carnaval, logo me lembrei dela. O samba foi sua razão de vida e foi no samba que ela se foi. Após uma apresentação da velha guarda pelo interior de Minas Gerais, regada a muito samba e a cervejinha que tanto gostava, Dona Geralda descansou.

A vó não viu o governo anticarnaval de Crivella e a pandemia afetarem drasticamente toda a cadeia produtiva do carnaval. Também não viu o cancelamento do carnaval de rua e a ameaça que assombra os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí e na Intendente Magalhães.

Muito além dos furdunços pelas zonas abastadas do Rio, há tempos os blocos de bairro, festas de rua e escolas de samba sofrem ataques. Agora, conservadores e racistas se unem aos progressistas elitizados pela total restrição da festa majoritariamente negra, pobre e periférica.

É evidentemente injusto cancelar um carnaval distante, semanas antes, enquanto festas, shows, cultos, eventos esportivos e toda sorte de aglomeração ocorrem neste momento em espaços privados, sob uma nova onda de Covid-19. Não seriam essas as ameaças que demandam restrição agora?

O novo surto foi agravado pelo réveillon e suas festas privadas, inclusive em locais fechados e sem ventilação, que continuam sem qualquer impedimento ou fiscalização. Isso só escancara a desigualdade, a elitização e a criminalização que tanto tentam impor contra as periferias.

Na contramão disso, as festas e demais expressões populares de rua são canceladas com urgência e antecedência sem precedentes: 55 dias. Logo, fica a suspeita sobre o que de fato define quem pode ou não pode curtir, se é mesmo o cuidado ou o poder econômico, o status e a grana.

Certa vez, para contrapor a influência do financiamento privado das campanhas eleitorais na política do Rio, um camarada que muito admiro disse que “quem paga a banda, escolhe a música”. Eu concordo. Hoje quem paga a banda só aceita dividir o samba com quem comprou ingresso.

E como ficarão os camelôs, os trabalhadores informais, os pequenos blocos e demais trabalhadores do carnaval pelos subúrbios e periferias? Não é possível impor a essas pessoas mais um ano sem trabalho e renda, principalmente diante da maior crise econômica da história do Rio.

Em primeiro lugar, precisamos de uma política de enfrentamento à pandemia que seja efetiva, democrática e garanta tratamento justo e igualitário para todas as pessoas, respeitando suas diferenças e especificidades. Os protocolos de cuidado devem valer para todos, sem distinção.

Os governos municipais e estadual junto à iniciativa privada ligada ao carnaval também devem compor e garantir políticas de auxílio, apoio e fomento a todos os trabalhadores que ficarão sem trabalho, renda e encantamento pelas ruas da capital, da Baixada e do Leste Metropolitano.

Tais medidas podem abrir caminho para a retomada econômica de um estado que perdeu cerca de 800 mil empregos e possui 1,7 milhões de pessoas vivendo na pobreza. Ante os R$ 14 bilhões da venda da Cedae, é o mínimo que se pode esperar dos prefeitos e do governador Cláudio Castro.

O samba é inaugural. Quando ouve o batuque pela primeira vez, a criança estranha, mas logo se envolve e dança. Quando empunha um galho e o toca no chão, já apreende sua língua. Ao tomar o lápis entre os dedos, risca e cria.

Se só os ricos podem dançar, não é meu carnaval.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Com contribuições do jornalista William Faria.

BBB e a crueldade cotidiana

No BBB, as agressões contra Lucas Penteado articulam uma série de violências que estruturam nossa sociedade, com destaque para o racismo, o capacitismo e o punitivismo. Nesta lógica, o indivíduo que não se adequa às normas e aos padrões da sociedade deve ser punido e excluído.

A situação torna-se explícita diante da contradição de gente que se mostra crítica aos padrões socialmente impostos, mas situações semelhantes ocorrem na rua, na escola, no trabalho, na família e em outros círculos sociais a todo o tempo.

O punitivismo não opera contra o crime, mas determina quem será o criminoso e o desumaniza. Assim, aqueles que não seguem as regras, os fora dos padrões, são tachados de “loucos”, “criminosos”, não servem e, por isso, são desumanizados, condenados à exclusão social, à tortura e à morte.

Desta maneira, o punitivismo também reforça o lugar do justiceiro e a lógica do justiçamento, isto é, do se fazer justiça pelas próprias mãos. Como se não fosse o bastante, ele também estabelece o detentor do poder naquela relação, reforçando os estigmas de quem “não serve” e os padrões do grupo dominante.

O BBB dá uma amostra de um dos traços mais cruéis que estruturam a cultura ocidental no decorrer da história.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduando em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro e professor.