Baixada Fluminense

Missão cumprida: a Casa Dulce Seixas agora tem CNPJ

Na primeira vez que visitei a Casa Dulce Seixas, eu estava tão encantado com a iniciativa que não preparei meu espírito para as histórias de vida que ouvi. Algumas histórias pertenciam a um passado distante, cujas dores haviam se tornado latentes; mas outras histórias estavam ali, vivas e vividas há poucas horas daquele encontro. Foi assim que conheci a história da amiga Shirley Berssey, coordenadora da casa, e a história de cada uma das pessoas acolhidas ali. Foi quando entendi como aquela casa de axé abrigou gente de todos os cantos que, na pandemia, se viu sem lugar no mundo. Shirley decidiu repartir tudo com quem nunca teve o direito de ter a si mesmo e ofereceu ajuda a quem precisava se encontrar.

Nova Iguaçu, 21 de maio de 2022. Conhecendo a Shirley, os acolhidos e a Casa Dulce Seixas.

Perante tanta dificuldade e incerteza, naquele mesmo dia, a gente conversou e concordou que buscar a autonomia da Casa seria o melhor plano. O CNPJ era fundamental para que a Casa não dependesse apenas das ajudas individuais ou de negociações políticas e eleitorais. Falei então com o Gabriel Bruno, que ainda construía minha candidatura e depois passou a trabalhar com o deputado federal David Miranda, também do PDT. A gente sabia que o David tinha um longo histórico de apoio à causa LGBTQIANP+ e que seu mandato toparia ajudar. Graças à articulação e à união de forças, deu tudo certo!

A gente não ganhou a eleição, mas, hoje, o único local de acolhimento para pessoas LGBTQIANP+ da Baixada Fluminense conseguiu, enfim, seu tão sonhado CNPJ. Isso será fundamental para possibilitar a captação de recursos, dar autonomia e fortalecer não só a Casa Dulce Seixas, mas a justiça social na BXD também. Uma porta foi aberta, afinal.

Fico emocionado ao escrever esse texto, pois agora me encaro no espelho e compreendo com clareza as razões pelo sufoco que a gente passou e o perrengue com que ainda lido. Aprendi nessa eleição como quem bebe um vinho muito amargo que reserva um retrogosto doce feito mel – e todo mundo sabe o quanto eu adoro doce, mas detesto amargura. David Miranda, Adriano, Danilo, Davlyn, Gabriel, Gustavo, Luz, Polly, Tamires e todo mundo que contribuiu nessa empreitada, essa conquista é de vocês também. Obrigado por terem topado essa loucura toda. Missão cumprida, né?

É verdade, a gente não ganhou a eleição de 2022, nem perto disso. Pelo contrário, o resultado eleitoral ficou muito aquém diante do tanto que a gente ralou por um bom resultado. Mas, tal como em 2020, antes mesmo de começar, muita coisa deu errado e muito do que fora planejado simplesmente ruiu. Parcerias não se concretizaram, promessas não foram cumpridas, problemas gravíssimos de saúde prejudicaram parceiros, obstáculos inesperados foram postos no caminho e o fogo amigo colocou a cereja no bolo. Mas, então, por que não desisti?

Nova Iguaçu, 26 de julho de 2022. Apresentando a Casa Dulce Seixas para o deputado federal David Miranda.

Eu não acredito que as eleições mudam as coisas. Eu acredito que a gente muda as coisas. Eleições são como chaves que abrem as portas para o diálogo, para o território e para o mundo que a gente quer. É possível que não nos deixem entrar nunca, mas a gente pode abrir uma janela para que alguém consiga pular e caminhar por lá. Por isso, se a gente pudesse potencializar as forças da BXD e das periferias do Rio, se a gente conseguisse ajudar pelo menos um de nós a avançar, todo o sacrifício valeria a pena. Por isso que eu decidi abrir mão, sim, mas decidi abrir mão de outras coisas. Abri mão do meu emprego, da minha parca segurança financeira e das minhas realizações profissionais, montei uma equipe potente, dobrei as tarefas, virei noites sem dormir e perdi alguns cabelos pelo caminho. Todo mundo que colou junto fez muitos sacrifícios também. 

Já desisti de muita coisa na vida. Apesar de muito competitivo, eu não tenho o menor pudor de assumir minhas derrotas. Porém, desistir ali seria injusto comigo e com quem topou a missão de fazer política na BXD coletivamente, seria injusto demais com toda a trajetória que a gente construiu junto e misturado. Com o tempo, a gente aprende que nem sempre há tempo para rascunho. Aqui a gente sempre atua nas frestas da vida, hackeando o sistema e aproveitando os espaços que se apresentam, sem soltar a mão de ninguém. Junto, a gente decidiu que não poderia abrir mão dessa oportunidade.

Durante as eleições de 2010, a então futura presidenta Dilma Rousseff disse em uma entrevista coletiva que não importava se quem vai ganhar ou quem vai perder vai ganhar ou perder, pois todo mundo iria perder de alguma maneira. Já em 2014, a então candidata Marina Silva diria que não queria nada a qualquer custo, pois preferia perder ganhando a ganhar perdendo. Parece confuso, mas, depois de três eleições, eu não poderia concordar mais com elas. Tal qual Darcy Ribeiro, hoje eu sei que posso ter fracassado em muita coisa que tentei na vida, mas os fracassos também são minhas vitórias. E eu tenho certeza que, assim como ele, eu detestaria estar no lugar de quem me venceu.

A Baixada da gente é a gente quem faz todo dia. E eu boto muita fé nas nossas potências!

Nova Iguaçu, 20 de janeiro de 2023. Comemorando com a vizinhança a formalização da Casa Dulce Seixas. Agora a Casa tem CNPJ!

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, especialista em Estudos Linguísticos e Literários pelo Instituto Federal do Rio de Janeiro, educador popular e diretor do documentário Nilópolis ocupa a universidade: a experiência acadêmica nilopolitana.

Quando conheci Mahatma Gandhi e Dr. King

Me lembro como se fosse hoje. Quando eu tinha uns 9 ou 10 anos, ainda em Macaé, passei a ter minhas primeiras crises de enxaqueca. Fui ao médico, mas minha saúde estava perfeita, nada além de certa intolerância a corantes e conservantes. Como eu era muito tímido, orientada pelo médico, minha mãe me levou a uma psicóloga. Lembro que ela era muito carinhosa e me fez perguntas típicas que fazemos às crianças, como o que eu queria ser quando crescer, se eu gostava de desenhar e o que eu gostava de fazer.

Muito fã do Ayrton Senna, eu queria ser piloto de Fórmula 1. Também disse que preferia pintar a desenhar, pois me achava péssimo com desenhos – o que depois descobri que era só falta de prática. Mas eu gostava mesmo era de jogar bola, fazer guerra de mamona e brincar de pique no quintal de casa.

A psicóloga então me perguntou: se você encontrasse uma lâmpada mágica e o gênio da lâmpada lhe oferecesse o direito a 3 desejos, o que você pediria? Eu respondi que queria que todas as crianças também tivessem brinquedos; que o conflito no Peru acabasse (Governo Fujimori, né?); e que houvesse paz no mundo. Acabei constrangido com a reação dela, ao me questionar se eu não gostaria de nada pra mim. É evidente que eu queria uma baita coleção de Lego, uma camisa do Flamengo e uma bola nova, mas achava as outras coisas prioridades diante de um poder tão grande. Ela não pôde deixar de concordar, mas ainda me pego pensando no porque disse isso.

Macaé era uma cidade de pescadores e petroleiros, como se pode imaginar, detentora de uma desigualdade absurda. Meus vizinhos eram ou muito ricos ou muito pobres. Eu, filho de uma trabalhadora petroleira, técnica em química, não entendia por qual razão eu morava numa casa antiga e humilde ao pé do Morro do Carvão, enquanto alguns amigos viviam em barracos de madeira e sem banheiro no alto do morro ou na beira da linha do trem e outros habitavam casarões na rua de baixo. Éramos do mesmo bairro e eu brincava com todos, mas eles sequer se conheciam. Os recortes raciais e de classe eram óbvios e flagrei por diversas vezes sua violência. Esse conflito me incomodava muito e formou meu modo de enxergar o mundo.

Aos 13 anos, quando deixei o interior e cheguei à Baixada Fluminense, encarei outro tipo de desigualdade. Eram desigualdades e violências naturalizadas diante de outras estruturas e de oportunidades diferentes, tudo me pareceu ainda mais brutal. Ora, se realidades tão distintas possuíam desigualdades tamanhas, então havia algo maior por trás disso tudo.

Como também se pode imaginar, cursar Ciências Sociais foi meu modo de tentar entender, explicar e contribuir frente a desigualdade e as consequências do neoliberalismo que vi em Macaé e em Nilópolis. Antes desse passo, porém, duas figuras mudaram meu modo de ver e vivenciar isso tudo. Foi ao conhecer as histórias de Mohandas Karamchand Gandhi e de Martin Luther King Jr. que compreendi a possibilidade de conciliar saberes e práticas de quem se indigna mundo afora e aqui. Eu devia compreender as experiências outras e as nossas para enfim enfrentar o problema.

Conhecer a luta anticolonial, por autodeterminação dos povos e pelos direitos humanos foram determinantes para que eu criasse em 2011 o coletivo Nilópolis Debate, uma organização de viés horizontal, fundada em práticas democráticas e na participação popular. Manter minha vida e meu ativismo na Baixada Fluminense são atos políticos dos quais, apesar do preço e das ameaças contra minha vida, não me arrependo, pois me matam e me reavivam todos os dias. Assim aprendi.

Após 73 anos da passagem de Mahatma Gandhi e 53 de Dr. King, suas práticas políticas seguem influenciando gerações inteiras na luta contra as desigualdades e por justiça social. Somos pessoas conscientes de que o mundo que queremos construir não surgirá de uma única cabeça iluminada, caridosa, distante e solitária, pois esse mundo já existe, construído pelas mãos ásperas do trabalho resiliente, diário e coletivo nas periferias de todo o planeta. São elas que têm muito a ensinar.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

Mãos ao alto: R$ 7 é um assalto

Em 2013, ao escrever sobre o aumento das passagens em Nilópolis, cravei que a cidade possuía o quilômetro rodado mais caro do Brasil. Desde então, sempre que acordo e descubro um novo reajuste nas tarifas, me sinto como Bill Murray em Feitiço do Tempo e revejo o velho texto.

Há quase 10 anos, na esteira das mobilizações que tomaram as ruas por todo o país, nossa mobilização colocou milhares de pessoas nas ruas de Nilópolis, forçando o então prefeito Alessandro Calazans a voltar atrás. Sim, nós barramos o aumento das passagens dos ônibus municipais.

O contexto político e econômico agora é outro. Tal como o Brasil, o estado do RJ afundou numa crise sem precedentes. Perdemos 800 mil empregos só nos últimos 5 anos e, hoje, somos 1,5 milhão de desempregados e 2 milhões em situação de pobreza, todos sem perspectiva de mudança.

O que também não muda é o impacto de um transporte caro e precário sobre a vida das pessoas. Naturalizamos o movimento pendular ao trabalhar ou estudar longe de casa e voltar ao fim do dia. Essa bola de demolição é a exploração extra de quem vive nos subúrbios e nas periferias.

De acordo com o Mapa das Desigualdades produzido pela Casa Fluminense, cerca de 42% dos moradores de Nilópolis que possuem vida profissional ativa trabalham no Rio de Janeiro. Muitos estudantes e pessoas em busca de serviços diversos também se deslocam diariamente rumo à capital.

A forma mais barata de se chegar ao Rio ainda é pelos trens da SuperVia. Entretanto, a passagem que hoje já custa R$ 5 chegará aos R$ 7 a partir de fevereiro. Em muitos casos, ainda é preciso tomar mais um ônibus ou o metrô, cuja tarifa por meio do Bilhete Único totaliza R$ 8,55.

Assim, se esse morador de Nilópolis for 5 dias por semana ao Rio, seu custo mensal é de pelo menos R$ 342, podendo chegar à marca anual de R$ 4.446. Isto é, o estudante, trabalhador e/ou empregador precisa arcar com mais de 4 salários-mínimos apenas para despesas de deslocamento.

Nilópolis, 1975 / Jornal do Brasil

E se, por acaso, esse mesmo nilopolitano ainda carecer de um ônibus municipal para chegar à estação de trem, a conta pode chegar a incríveis R$ 25,00 por dia ou R$ 500,00 por mês. São R$ 6.500,00 por ano, sem incluir alimentação e outros gastos essenciais. Dá mesmo pra se viver?

Com o aumento das tarifas, agrava-se também a dificuldade de contratação de quem mora nos subúrbios e periferias. Devido ao alto custo de seu deslocamento, as raras e já muito concorridas vagas de emprego sempre serão destinadas àqueles que demandam um menor custo ao empregador.

Por isso, não é incomum vermos trabalhadores arcarem com o valor parcial ou total de sua passagem, além dos 6% descontados de seu salário para o vale-transporte. Na atual conjuntura, muitos topam pagar para conseguir algum emprego, exemplo da brutal precarização da vida no Rio.

O transporte público, afinal, se tornou o principal custo diário dos trabalhadores nas metrópoles afora. No Rio, a ineficiência do serviço é acentuada pelas desigualdades e por seu histórico projeto de gentrificação — empregos em zonas nobres e distantes da maioria da população.

Neste cenário, fica evidente que qualquer reajuste é perverso e injusto. Para debater a questão com seriedade, é preciso democratizar o processo, com uma efetiva transparência nas contas das empresas do transporte público e ampla participação popular nas análises e nas decisões.

Mais do que isso, combater a crise no Rio é enfrentar seu projeto histórico de apartamento e apagamento do povo, dos centros para o subúrbio, Baixada e favelas. Só construiremos uma cidade mais justa, democrática e para as pessoas por meio de uma efetiva e popular Reforma Urbana.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.

 

Municipalização do Hospital de Saracuruna e a Baixada Fluminense

A prefeitura de Duque de Caxias anunciou sua intenção de municipalizar o Hospital Estadual Adão Pereira Nunes, mais conhecido como Hospital de Saracuruna, na Baixada Fluminense. Quais são os impactos disso sobre a Baixada Fluminense?

A prefeitura já havia assumido a cogestão do hospital em julho de 2020, em meio à pandemia. Depois, o hospital ficou sob nova direção privada, apesar das diversas denúncias sobre o processo para sua escolha. Diante da precarização dos serviços e dos atrasos sobre salários e benefícios dos profissionais, desde outubro, uma outra organização social (OS) administra o hospital.

Entretanto, nesta quinta-feira, dia 10, o Governo do Estado recuou da decisão. Enquanto o governador Cláudio Castro (PL) diz ter firmado apenas um termo de compromisso para melhoria do atendimento no hospital, o prefeito Washington Reis (MDB) disse que a cidade tem plena capacidade de administrar o Hospital de Saracuruna, ao apresentar um protocolo de intenções favorável à municipalização.

Dito isto, a proposta de municipalização pode parecer boa, não é mesmo? A própria descentralização da gestão e das políticas de saúde no país – realizada entre a União, os estados e os municípios de forma integrada – é um dos princípios organizativos do Sistema Único de Saúde – SUS. Entretanto, precisamos analisar os dados mais a fundo.

Dados do Ministério da Saúde apontam que:

– Enquanto a cobertura de atenção básica no Rio alcança 58,94% da população, em Caxias ela alcança 45,41%;

– Já a cobertura de equipes da família no Rio é de 47,55%, enquanto em Duque de Caxias é de 29,26%;

– Se 33% das gestantes têm consulta pré-natal no Rio, Caxias atende apenas 5%.

Em nota, o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde do Estado do Rio de Janeiro (COSEMS/RJ) alerta para o perfil regional do Hospital de Saracuruna, inclusive de caráter estadual para alguns procedimentos. A unidade é a principal referência para casos de trauma e alta complexidade na região.

“Vale ressaltar que a unidade é a principal referência para casos de trauma da Baixada Fluminense, e que, 50% dos pacientes críticos (vaga zero) tem nessa unidade sua referência, além de estar localizada numa região que possui a menor relação leito/habitante de todo Estado do Rio de Janeiro (0,6/1000 habitante)”, afirma Rodrigo Oliveira, presidente do Cosems-RJ e secretário municipal de saúde de Niterói. 

A municipalização também é contestada pela Defensoria Pública, pelo Ministério Público, pela Assembleia Legislativa (ALERJ) e pelas próprias secretarias municipais de saúde dos municípios da Baixada Fluminense.

Por isso, para estabelecer critérios efetivos de garantia de acesso à saúde, qualquer iniciativa desse tipo não pode ser tomada sem um amplo debate entre os gestores municipais e estadual. Esse é um debate que deve ser municipalizado, mas travado, no mínimo, por toda a Região Metropolitana.

Vale lembrarmos os fundamentos doutrinários e organizativos do SUS: a universalização, a equidade, a integralidade, a descentralização e a participação popular.

Rennan Cantuária é sociólogo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, assessor de planejamento na Fundação Municipal de Saúde de Niterói e educador popular.